Firstly, I think is important to take into account this statement’s context, which is: I, Anna, who write every week, if not more, and have dedicated the last 10 years of my life to writing and thinking about RES’ work, am saying that I do not understand his text. That is, my “not understanding” speech was at no time presented to me as an impossibility focusing on his work, my non-understanding is not synonymous with an impediment. On the contrary, I believe that it is my “not understanding” that precisely generates a great magnetism on my part towards his work, towards his world, towards his being. I think it is very important to contextualize first, because a statement, or words, require a context to exist – the same statement can mean different things depending on who says it, that is, depending on the context in which the speech is inserted; and yet, this same statement coming from different contexts may end up belonging to another, larger, context, allowing them to actually want to say the same thing.
Returning then to my non-understanding, contrary to what it might seem, this is what authorizes me to want to walk towards his work, as I am fully aware that, as CCS said in a past text, it is like a snake, “it is the serpent of paradise that feeds you – when you can see it, it is already gone – you can see, with its trail, that the door of hell is the same as the one for heaven”1, the more I try to approach it, the more complex it presents itself to me, the more I understand, the deeper my non-understanding, and the more sacrifice it requires from me to get close, again, not to it, but to the desire to be close to it! (Note that there is a very significant difference here). This desire is rooted in my “not understanding”, saying it, saying “not understanding”, facing the contradiction that this non-understanding means, the contradiction that it is to be able to enter a non-cognitive space, although I only have the cognitive skills as tools to articulate myself, “not understanding” is what brings me closer to my desire, my non-understanding is my engine driving towards my desire, and my desire, I suspect, is actually this space of non-cognitive understanding of my being.
To not understand is to be fully aware that my understanding has limitations, that what I understand by “me” also has limitations, and that which I do not understand is unlimited – so I prefer to focus on the non-understanding than the understanding, since what has limits seems to be uninteresting to me – “not understanding” is being aware, or understanding, that my articulation is still binary, chronological, limited and lacking study; not understanding is being aware of the other, of the other, which in this case is the master, that is, is the other of the other2, is a new desubjective3 subject, it is the other of itself4, so it is much closer to me than myself – having said that, not understanding is the only way I can approach myself. To not understand is to finally be able to see the master, and know that between his words there is that which is said, that which is said is not in his words5, but in the existing context, to whom they serve – and that context is the abyss itself, this abyss that I fall through when I am engulfed by my desire; at the limit of the master’s erudition there is repression, the saying that is repressed to keep himself alive, the repressed sublime saying that sustains his life. I believe that “understanding” in fact would be the destruction of repression, therefore, an act of destruction of life, because, as said by Lacan, repression is what sustains the subject; if according to Warburg6 there is no art without repression, I also think that without repression there is no love.
What I mean by this is that I believe that RES’ text itself is precisely the limit between not understanding and understanding – since RES’ understanding also depends on very serious considerations, for RES understanding is no longer what we understand, perhaps if not from its contrary. RES’ understanding maybe means not “finding a way to identify with something”, as I often perceive it to be in my own body, but actually a constant un-identification with oneself, understanding for RES is a way of being in constant transformation of himself, of change, it is the moment when his brain is in a state of overhaul, so when RES understands, maybe it is also a way of un-understanding himself, and this un-understanding of himself, I believe is a big step towards what he really is, and that only when he un-understands can he come to know – even if unknowingly.
Futuro jovem artista,
Você deve ter ideias grandiosas sobre seu futuro sucesso. Ninguém com pequenas ambições e objetivos vagos chegou a ter muito valor nesse jogo.
Desde pequeno, eu sonhei em fazer parte dos grandes artistas em que os trabalhos inspiravam os jovens a falar: “É isso o que eu quero fazer… Eu quero fazer algo assim!” Eu queria que o meu trabalho estivesse em coleções de museus, não queria ficar indo aos museus para ficar vendo somente os trabalhos dos outros. Eu só queria que a minha formação na escola de arte tivesse sido rigorosa o suficiente para preparar o meu caminho para isso. Quando eu terminei a escola, eu senti, como se sente normalmente, a mercê de autoridades misteriosas que eu desconhecia, e de forças que agiam muito além do meu controle. Eu tinha feito alguns exercícios, e fiz algumas coisas aqui e ali, mas nunca sentia que realmente aprendia alguma coisa. Esperança e fé eram basicamente tudo que eu tinha para continuar. Não havia nada para se almejar, nenhum trabalho para seguir. Era-me dito: “Não há nada que você possa fazer. Cale a boca e faça seu trabalho… Eles vão te avisar se você alcançou a nota esperada.” Essa configuração não é confiável, e é totalmente inaceitável. Nunca entregue seu sonho ao acaso, sozinho1.
Obviamente, eu fiquei bravo e amargo quando terminei a escola. Sentia que haviam lições importantes e concretas a serem aprendidas, mas poucos professores pareciam dispostos ou capazes de passar essa informação a diante. Nesse aspecto, eu entendo uma coisa ou outra. O que eu aprendi com a escola me dá muitos motivos para ter bastante discernimento em relação às pessoas com quem eu compartilho esse conhecimento. Sua carta não me fornece nenhuma informação específica sobre a sua identidade. Eu não fazia a menor ideia de quem você era. No entanto, o seu apelo parece bastante genuíno, então apesar de algumas reservas, vou me arriscar e te dar uma chance.
Você está há pouco menos de um ano fora da escola, então o que você deve estar experienciando são sintomas de abstinência, não muito diferentes daqueles associados a drogas alucinógenas. Você estava em uma bad trip, e vai demorar um pouco para se conectar com a realidade. Há, porém, algumas coisas que você pode fazer, algumas técnicas que funcionaram comigo, para minimizar a confusão e o trauma.
Escolas de arte são um pouco como “becos de crack”. Quando você está lá dentro, o ambiente parece acolhedor, tudo lá parece notável já que todos estão dividindo o mesmo cachimbo. No nevoeiro inebriante do diálogo e da crítica, as menores conquistas são acentuadas. Você começa a acreditar que coisas que você faz tem valor simplesmente porque você as fez. Seus amigos todos te apoiam, eles ‘curtem suas coisas’. “É tudo muito interessante, um belo trabalho”. Desconfie desse papinho. No mundo sóbrio, no mundo lá fora, ninguém realmente se importa. Aqui, no mundo real, você tem que conquistar atenção, e o espaço reservado para o reconhecimento e a celebridade é curto e estreito, sem a menor dúvida. Em todo caso, você inalou muita merda, e agora é hora de assoprar a merda para fora e ir para a reabilitação.
Reconhecer o delírio é o primeiro passo em direção à recuperação, e, mais provável que não, uma carreira bem sucedida como artista.
Ninguém com um ego pequeno entra nesse jogo.
Tudo não está OK!
Sempre escolha assuntos que te interessam.
O oponente é a subjetividade.
Artistas não são mágicos ou xamãs, profetas ou videntes. Nós fazemos coisas, e os dispositivos que usamos para ‘transfigurar o lugar comum’ são reconhecíveis. Isolar, re-contextualizar, transformar a escala, inverter, etc. O ‘status especial’ da arte tem mais a ver com sua relação com poder e dinheiro do que com qualquer atributo inerente a ela2.
Todo dia no atelier é um passo em direção a ser tudo que você pode ser. Marcel Duchamp pensava o atelier como um ‘laboratório’. Adote esse conceito. Resolva problemas concretos. Inspiração é produzida pelo trabalho.
Simplifique, Simplifique, Simplifique. Force relações entre coisas que parecem ser incompatíveis3. Se elas fundirem, talvez você tenha encontrado algo fresco, algo novo. Esse procedimento deveria ser executado com a precisão metódica de um engenheiro químico.
Fique atento para a função de seu trabalho, seu desempenho dentro de um determinado gênero4, ao invés de seu significado. Não é o assunto em si que importa, é o tratamento que importa.
Nomeie sua ambição. É preciso que esteja claro o que é que ‘Artistas’ fazem. E em seguida perguntar, que tipo de ‘Artista’ você ser, e o que é que você quer conquistar em um campo específico.
Sempre compare seus esforços com o que parece ser criticamente favorecido em seu tempo; o que está sendo alegado que os insere em um status privilegiado.
Distinga-se da multidão. O melhor pedaço de crítica que já recebi foi que algumas colagens de mídias distintas do começo de minha carreira eram agradáveis e atraentes, mas sumiam nas massas de coisas que eram iguais a elas, o que Barthes chama de o ‘studium’, ou de uma categoria não considerável de imagens e objetos.
Você entendeu perfeitamente a importância de uma consciência histórica. Apesar de que isso não deve se limitar aos objetos de arte somente, mas incluir a consciência das circunstancias políticas, econômicas e sociais sobre as quais seus fabricantes trabalharam5. Isso pode ser uma força catalizadora e fornecer uma base para uma missão com propósito6. Por exemplo: Como um Afro-Americano, descendente de um povo escravizado para servir os interesses e venefícios dos “Brancos” dominantes, eu estou bem ciente da fragilidade e fraqueza da minha posição no mundo mais amplo, e mais ainda na estrutura institucional do mundo da arte. Nós não estávamos presentes na criação. Os negros não estavam envolvidos na codificação dos termos do ‘Mundo da Arte’, assim como não estavam envolvidos na assinatura do Tratado de Versailles quando as potências ocidentais e a Rússia dividiram a África em suas províncias de influência. Como os ‘recém-chegados’, nós ainda não controlamos instituições independentes o suficiente, muito menos os recursos de capital para montar um desafio competitivo para o ‘mainstream’. Pessoas que vêm de fora não podem assumir nada como garantido em um campo tão subjetivo7.
Se você é negro, você já está começando de trás8.
Como os Japoneses afirmaram, oitsuke, fechar a distância, e oikose, ultrapassar os brancos, enfraquecer, assim, o domínio que está nas mãos do “Branco”, é o desafio que enfrentamos. Levou um tempo, mas eu finalmente me dei conta de que não estamos na corrida juntos. Se seu reconhecimento depende da simpatia e da generosidade dos outros, você está em um mundo de muito perigo, meu chapa. Há uma competição acontecendo. O mundo da arte não é uma igualdade de condições. No entanto, se você vai jogar, você tem que jogar para valer, e jogar para ganhar.
Um artista é um profissional do mercado como qualquer outro. São necessários tremendos recursos e um bom contador para ter fôlego o suficiente na prática para poder evoluir e se estabilizar.
Só o tempo que vai fazer uma avaliação significativa e realística das conquistas de cada um.
Não há cronogramas de trabalho que já previamente garantem o sucesso de uma carreira, então tenha paciência. A urgência que te move, que te propulsiona para ir até o atelier todo dia, deve ser o desejo de ver figuras que ainda não foram realizadas9. Se é aí que seu coração está, integridade não será uma questão.
Sinceramente,
Kerry James Marshall, Chicago
Coesão estética. O que poderia ser um uso adequado desse termo? A sessão de desenho da última sexta parece ter gerado uma abertura para uma possível nova compreensão desse termo. Algo em movimento, na fusão ou na vontade de se fundir com a contradição, de retornar a ser contradição, no retorno de poder gerenciar displays para a linguagem de estar vivo.
Me ocorre muitas vezes que RES é um homem muito perigoso – e abre novas fronteiras para novos espaços para o perigo poder atuar.
Colocamos o “ser perigoso” como algo pejorativo, “perigoso”, reprimimos o “ser perigoso” de nós, e acredito que aí é onde mora mesmo o perigo. Falamos muito de gratidão, e vejo no modo como RES opera no mundo, um gesto de agradecimento à vida: não permite que o “ser perigoso” seja reprimido, seja jogado fora, seja colocado de lado, afinal, como disse Nietzsche, “e se o nosso pior for também o nosso melhor”? E por que somos tão tímidos em buscar diferentes lugares para articular o nosso perigo, o nosso demônio? Creio que aí está mais um dado interessante sobre RES ser um artista para tempos futuros, quando inclusive, quem sabe, essa palavra “artista” nem mais exista. RES é então um homem do futuro, assim como o homem hoje está pensando em novos displays possíveis para poder viver no espaço, novas linhas de produção, novos tecidos para roupas, novas profissões, uma nova estrutura de solução, um novo espaço de solução que será necessário para o espaço. O homem no espaço não pode se fiar nas soluções da Terra, tem que pensar novas soluções para o espaço. RES não se permite ser leviano com sua condição, com a quantidade de energia que passa por ele, com sua contradição, RES está constantemente construindo recursos, novos espaços possíveis que possam abarcar a contradição – com um problema no espaço, não podemos nos fiar nas soluções da Terra. Essa me parece uma metáfora perfeita para a sua obra: não podemos mais nos fiar nos moldes que fizeram de nós, não podemos responder às demandas da nossa arquitetura psíquica como nos foi ensinado, podemos responder de outros modos, podem inventar novos arranjos dentro de uma arquitetura já dada. RES lutou diariamente para não se deixar ser domesticado para se adequar a um tempo, mas pelo contrário, se ficcionou, inventou novos arranjos de si, para assim conhecer tempos vindouros. RES entendeu que pode inventar uma linha de produção no espaço, isto é, entendeu que o display da sua violência, do seu perigo, não precisa ser como o de um estuprador de criancinha – quer ser ainda mais criativo que este, quer inventar displays, novos espaços possíveis para seu perigo.
RES articula-se então em uma agressiva luta contra qualquer tipo de entrave que a vida lhe apresenta, já que compreende o entrave não enquanto problema, mas enquanto oportunidade para invenção, para descoberta, para descoberta de um novo homem. Sua obra não se trata mais de criar um objeto de arte, mas de inventar dispositivos para a vida, inventar novas formas de estar vivo, de estar constantemente inventando novos displays para a vida.
Importante detalhe: não é, porém, que Rubens se utiliza de “displays da arte” como um espaço de descarga de sua violência, não se utiliza da arte como uma descarga de energia, mas o próprio assassinato está na abertura para se manobrar de tal forma em torno de diferentes lugares, a violência está na inventividade, a violência está em não aceitar as formas como elas nos são dadas. Já passou da fase de usar arte para poder ser violento, agora, a destruição dos lugares comuns da arte (ou, de si mesmo) é o display que encontrou para sua violência. O display da escultura ou desenho de sexta não é o desenho de sexta, mas o display são as manobras para poder fugir de um lugar já nomeado.
O display já não é mais o objeto. Ou o objeto não é o objeto que achamos estar vendo. O display / o objeto é o intervalo que o antecipa e que o constrói, e que está lá, e vemos, ainda que não conseguimos nomear. É aquela coisa que nos comove, em um papel modelado com cola e água. É a própria incompreensão da comoção em algo tão material, é o transcendente passando diretamente para algo imanente.
O display? É o espaço infinito de possibilidades que antecipa o objeto – é o pré-objeto, o segundo antes de chegar à forma é todo o infinito do segundo que antecede o objeto final que está contido no objeto. E faz dele assim, algo em movimento, algo inacabado.
A conclusão que hoje me toma muito fortemente é a de que Rubens sabe exatamente o que ele quer, e assim me dou conta de que isso não conclui nada, só inicia um pensamento de algo que parece ser um código secreto diante de mim todos os dias – o que é saber o que você quer? Qual o objeto desse querer, que estamos chamando de desenho, mas que também parece se ancorar no desenho como um alicerce para existir. O desenho é um dado material desse querer, mas o desenho também me parece como um nó, um laço em uma grande corda que está sendo tecida para segurar outra coisa, algo que me escapa da visão, mas que não deixa de estar lá, visível diante de mim. Me pergunto que futuro é esse pelo qual o desenho pertence, se esse futuro é possível para nós seres humanos ou se será um futuro que para sempre será futuro, ou, o por vir, um tempo que teremos que criar em nós para acessar, um futuro de nós, o futuro de mim agora, que existe em mim sempre um passo à frente de mim, o meu saber que nada tem a ver comigo, o que se sabe em mim, quem sabe seja esse o futuro pelo qual o desenho pertence. E quem sabe seja esse o saber que sabe o que quer, não do desenho, mas de Rubens. O saber que sabe de RES usa RES para construir o seu desejo, então o desejo passa a ser um desejo do “saber”, e não um desejo de RES.
Por isso não se trata necessariamente de esperar um momento da vida em que o desenho se fará compreensível, ficar esperando esse tempo futuro onde eu possa melhor assimilar o desenho, mas o de construir maciçamente esse tempo agora – esse tempo nunca vai chegar se esperarmos por ele, pelo contrário, esse tempo é o que nos espera constantemente, dia e noite, para que o encontremos em nós. Esse “tempo futuro que pertence o desenho” não se trata de um dia que vai chegar, mas um dia que eu vou construir para poder vivê-lo, vou me construir, me esculpir para poder um dia ser assaltada por esse futuro de mim e poder sustenta-lo – entendo esse momento de gozo profundo, quem sabe, um gato que os grandes mestres dão na morte: invertem, subvertem a gramática de tal maneira, que vivem nesse mundo em um tempo atípico, suspendem a ideia de início e fim, onde o discurso é para alguns só código, mas para outros, a única possibilidade de se ter uma conversa , em suspensão – é mesmo puro gozo!
E quem saba aí esteja uma pista da previsão de Rubens do futuro da arte, já que cada desenho é um veículo para que ele adentre um tempo que sempre estará por vir, e dessa forma, o “passado” da arte não é necessariamente obsoleto, já que ele está sempre para acontecer, está sempre em seu futuro; o próprio Giacometti é para o futuro, ainda que esse futuro seja agora no desenho de RES.
Vendo R.E.S. trabalhar, me dou conta, considerando a velocidade de seu pensamento prático, a velocidade com que ele adquire soluções, com que ele busca novos utensílios de guerra, novos instrumentos de batalha, instrumentos, armas que o salvam em uma batalha, as soluções vem, não como “soluções plásticas”, mas como soluções que realmente o salvam de não ser derrotado, derrotado por ele mesmo, pela sua insuficiência, ele quer poder ser derrotado pela suficiência, pelo fracasso em construir uma obra que será maior que ele mesmo, o seu fracasso se torna, não em não ser capaz de produzir, mas o de produzir algo que é maior que ele. Ou então, voltando a considerar o próprio modo como age, me dou conta de que ele mesmo, com tantos assistentes, é um assistente, Rubens recebe ordens e as segue, é como uma antena que capta sinais, se instrumentalizou para poder colocar esses sinais no mundo, criou todos os artifícios necessários para que esses sinais existam para fora da latência. Esses sinais, ou, o seu desenho já existia antes dele, já existia antes de ser feito, mas Res gerou um espaço propício para que o desenho pudesse existir em outra ordem de existência, existir enquanto o que ele se apresenta diante de nós – é mesmo um ato generoso, o de fazer algo que já existe (mesmo que escape nossa visão), para esse mundo, matérico, como mesmo uma encomenda. O desenho é uma encomenda que passa por R.E.S. para existir, R.E.S. é o veículo de existência dessa encomenda, é o carteiro, que busca a encomenda em um lugar e o leva para outro, R.E.S. busca o desenho no kairós, em um espaço invisível que se encontra entre ele e o papel, e o traz para a natureza, e assim, irrompe as distinções entre esses mundos, entre os tempos, o desenho se torna justamente a fresta, a possibilidade de reunião desses dois mundo, que na verdade estão cindidos enquanto “dois” por uma crise espiritual do nosso tempo. Talvez esse possa ser um termo a se pensar, o artista enquanto o carteiro, que recolhe a carta em um banco de dados e de códigos e de leis próprias e a traz para outras leis, para outra esfera, outra galáxia, ainda que essas duas galáxias sejam a mesma, o carteiro faz o trabalho sujo de transfigurar uma coisa para outra, transformar um código amorfo em matéria, mas matéria também amorfa, ou seja, a coisa não deixa de ser o que ela já era, mas agora se apresenta encarnada no desenho diante de nós.
E então essa encomenda passa a existir dentro do universo plástico, cultural, temporal, social de R.E.S., assim como foi com Cézanne, ele foi o veículo de existência de sua pintura, e é aí onde ambos, R.E.S. e Cézanne se encontram, a primeira camada do desenho pode representar ou situar o artista em uma história cronológica, mas depois dessa camada, os desenhos dividem o mesmo sítio histórico anacrônico. A primeira camada do desenho é o artifício que sustenta o desenho que na verdade é o que situa-se entre o anteparo da pintura de Cézanne e o desenho de R.E.S. – entre esses dois encontram-se ambos. E como o Rafael Chvaicer muito precisamente falou, “R.E.S. fez algo que Duchamp gostaria de ter conseguido fazer: eliminar a mão do artista, através da mão do artista” – a mão de Rubens é somente um instrumento, como mesmo disse antes, um canal, um dispositivo de ação de algo que não é dele. A questão então é investigar qual o trabalho para poder se despossuir de tal forma, e só então nessa despossuição, poder estar em devolução de si mesmo. Benjamin em sua passagem sobre o colecionador diz que um colecionador pode ter muitos objetos, mas isso não significa que ele os possui. Rubens ao abrir mão de se ter, é possuído por ele mesmo – e sabe que ele mesmo não lhe pertence.
Percebo-me pensando sobre a língua e o que a antecede, a construção antecedente à língua que a constrói e como que concomitantemente a língua nos constrói.
Entendi com clareza que R.E.S., ou isso que chamamos de “um grande artista” não fala a mesma língua que os demais. E isso não significa que necessariamente as palavras sejam outras, que os verbos sejam conjugados de maneira excêntrica, que a sintaxe seja ordenada de forma mais “livre”, mas toda a estrutura da língua é outra, e isso significa: toda a sua estrutura de apreensão da vida é outra. Assim como para um alemão pode não fazer sentido o “jeitinho brasileiro”, para um grande artista a orla de compreensão, apreensão, resposta à vida dada por um ser ordinário, comum não faz sentido algum. Nossa língua é um DNA de quem somos, e mais, somos hoje prisioneiros dessa língua, se ela nos possibilita tais frases a serem articuladas então isso significa que essa articulação faz parte do nosso sangue, de nossa epistemologia, de nossa história, somos completos prisioneiros da língua, e também, somos nós que a inventamos, e ela nos inventa.
Da mesma forma que a estrutura do japonês é outra, da mesma forma que o japonês ou o grego são intraduzíveis – não por não termos as mesmas palavras que eles, mas porque o nosso ser está estruturado de forma diferente, o que é intraduzível não é uma palavra, mas é a vida que passa por aquele que a profere.
Acho bastante significativo a nossa língua permitir a construção de uma frase como “a vida não faz sentido”. Acredito que a sintaxe disponível na nossa língua para tal elaboração já diz muito sobre a nossa doença e sobre as nossas dores. Claro que, Freud mesmo diria, a angústia que constrói a neurose e não o contrário, então faço um paralelo nessa problemática ainda para complicar mais um pouco: a dor é que constrói a língua, a angústia que inventa a língua, ainda que a língua nos aprisione. Logicamente, poderia então concluir que “nós nos aprisionamos?”
Me pergunto se para um esotérico, se para alguém como Madame Blavatsky teria alguma lógica a afirmação: a vida não tem o menor sentido. Sinto, que, de algum modo, tal afirmação expõe uma arrogância, uma prepotência do homem, uma prepotência ancestral, ontológica do homem em achar que está no comando. Acompanhando R.E.S., percebo que essa elaboração realmente não faz mais sentido para ele, mas não de forma demagógica, ou porque ele construiu uma obra, ou porque tem muitos alunos, muitos empreendimentos, e porque por isso não tem “tempo” para deixar tal coisa ser pensada. Não acho que seja por aí. Mas todas essas coisas provêm de uma vida estruturada justamente em torno de uma profunda consciência de insignificância, de humildade (apesar de todos esses termos serem definições de uma jovem que está construindo uma vida para ser dobrada, então provavelmente esses termos não sejam os melhores do seu ponto de vista), estão circunscritas por um saber de que não está no controle – a vida é o sentido, é o único sentido que temos, estamos querendo constantemente atribuir sentidos mundanos à vida, atribuir sentidos vulgares e muito menores à vida. Me parece que se trata de uma questão lógica: realmente, dentro do tipo de sentido com o qual queremos entupir a vida, ela não terá, pois ela é muito maior que esse tipo de sentido, querer atribuir à vida um sentido vulgar fará com que a vida, desse modo, não tenha mesmo sentido. O sentido parece estar murmurando em nossos ouvidos dia e noite, basta acordar, basta inclusive estar dormindo, o mundo pode estar em guerra que o sentido da vida continuará murmurando. E mais, não hesito em pensar que as guerras fazem parte desse sentido, dessa lógica, dessa teia.
Me parece mais que é uma questão de encontrar, de ouvir as pistas de sentido que a vida nos oferece. Retroceder. Nós é que somos arrogantes, o sentido da vida está em uma estrutura gramatical que é muito maior que a nossa e por não a acessarmos, já concluímos que não há.
A língua que falamos hoje está correndo por esse afluente do sem sentido, está correndo por um afluente de uma construção que teme profundamente olhar para o outro, para o nosso vazio, nosso suposto “vazio de sentido” e ver nele o “brilho do que é verdadeiro”, como diria Beuys. É justamente nesse vazio que se encontra todo o sentido em latência, é nesse vazio que murmura o sentido.
Acredito que se tornar um artista seja entrar nessa linguagem, seja subverter as leis de uma língua imposta por um país, uma sociedade, um tempo, e com os recursos dessa língua, transfigurá-la, para que ela dialogue, para que ela se ajuste em uma língua que é muito mais sutil, na língua do sentido. O “sentido da vida”, poderia dizer, é a sua própria língua, é uma língua em si, possui seus códigos, suas leis, sua sintaxe, gramática… o lindo disso é que o vocabulário dessa língua, as palavras dessa língua são ordinárias, o vocabulário pode ser a subjetividade de cada ser humano, pode ser o display que seja: gastronomia, pintura, texto, malabarismo, engraxate, camponês, pouco importa, não há o display correto, inclusive, o display está constantemente querendo ser inventado. O display está todo por fazer, a humanidade estará sempre por fazer.
Mas esse sentido, essa língua a qual me refiro não se aloja no vetor dialético do sim e não, do ter ou não ter algo, da sanidade e da loucura. Esse sentido não se trata de uma oposição a algo, R.E.S. não faz uma oposição a um sistema, a um tempo, mas dentro desse tempo, dentro dos recursos que esse tempo oferece os transforma em outra coisa, devolve à ontologia do tempo o próprio tempo fugitivo, o presente que nos escapa, as possibilidades em latência, invisíveis aos olhos obstruídos por verdades que construímos e que nos foram impostas.
O que então me parece realmente grave, é que os sentidos da vida foram todos impostos a nós, o rumo da vida parece só ser um, o rumo da vida parece já estar preestabelecido, as profissões já foram tachadas, a ordem é só uma, as relações seguem um script, a fala, o pensamento, o comportamento, a educação, todos já estão pautados por um roteiro desse tempo. Intuo, porém, que criamos todas essas verdades pois não suportamos um grotesco vazio, não suportamos não suportamos a deriva, não suportamos não estar no controle, então inventamos um falso controle através de nomes, rumos, profissões, conhecimento, receitas, scripts, enfim, um modelo de sociedade e de vida, um fim muito específico para a existência. (É mesmo desesperador).
A questão que realmente me fascina, e que acredito ter muito a ver com ter volume de vida, quem sabe é que aquele que tem volume de vida é aquele que suportou destruir, arrebentar, assassinar todos esses supostos “sentidos” impostos por uma sociedade, um país, um tempo, uma classe social, e permanecer em um vazio de sentido, que não significa ser um sem sentido, não corre por esse afluente epistemológico; mas significa suportar um vazio e trabalhar em direção a poder ser apresentado pela vida o seu sentido. E assim, tecer os elos perdidos, em latência desse profundo sentido, sem autoria, deixar com que a vida se crie através de nós, ser mesmo um agente da vida. Ou seja, ter volume de vida seria então para aquele que está mesmo vazio, para aquele que tem espaço de manobra. Ironicamente, volume de vida só tem quem está vazio, para assim ter espaço para manobrar a vida no mundo. Um mundo que na verdade, secamente, com uma luz tão forte que é insuportável, é vazio desse sentido que estamos constantemente dar para ele. O mundo é cru. É de uma crueza insuportável. Mas só é possível inventar dentro dessa crueza insuportável. Negociar com o insuportável dessa crueza até que a crueza comece a se transformar em outra coisa – quem sabe essa outra coisa seja uma invenção. Por isso digo que Rubens é um assassino. Um assassino de todo um sentido da vida que lhe é constantemente imposto, e, para não ser leviana, que seu próprio corpo quer constantemente o impor, já que de algum modo, nosso corpo precisa se proteger de si mesmo. Mas o artista negocia com forças maiores para que o corpo possa finalmente voltar a conviver com si próprio. E só através desse assassinato, e de um arsenal de ferramentas, Rubens faz nascer o novo, a partir do não ter nada, ter algo. Por isso que não tem limites, e que pode tudo. Pois é justamente ao não ter nada, que se pode ter tudo.
Rubens é o prático que manobra a vida que o atravessa no mundo. Negocia um espaço no mundo para essa vida.
A linha do horizonte
A luz difusa do fim da tarde
Um pescador lança sua rede
A gaivota balança no céu
Um peixe voador
Umit o dançarino
O motor do barco na noite
Sonhos intermitentes
Acordar é um esforço
Expio uma fresta
Cercada por todos os cantos
Xeque mate
Virgínia Woolf mergulha
entre as pernas
A galáxia em expansão
Sem saída
Invento
Ser livre
Um veleiro
Uma moça de maiô vermelho
Uma rede é lançada
Outra fresta
O navio cargueiro japonês
Tripulante de olhos azuis
Da franja que pende sobre o rosto
Ao mini shorts que escapuliu
Por debaixo da saia a caverna
Ela
De fato
Não é ele
Na rua escura
Um porta invisível
A caverna da abelha
Na rua escura
Uma luz pisca
Um banquinho com uma almofada
Na rua escura
Uma porta entre-aberta
Unha do pé de dragão
Fundo do mar
Silêncio:
Retorno numa velocidade atroz
O mini shorts
por debaixo da saia
encontra uma saída
Um barco pesqueiro
Túmulos ancestrais
Invasão persa contemporânea
Mel chá e azeite
Os mortos
Não nos assombrarão
O pescador
Barriga de pedra
Matagal de romãs
A moça
O oceano
Um mergulho basta
A moça
O oceano
Discípulo e mestre
A moça
O oceano
batalha mitológica
A moça
O oceano
Um copo de whisky
A moça
O oceano
O sabor das palavras não ditas
A moça
O oceano
Uma lupa gigante
A moça
O oceano
Cavidade iluminada pela lua na noite
Darya, tripulante
Trança no cabelo
Mini saia
A questão é que não se trata de aprender a fazer as coisas, ou aprender uma coisa ou outra coisa. Acho que queremos muito aprender a fazer as coisas, quis muito ter um ofício, quis escrever, quis ler, quis pensar, desenhar, esculpir, ser uma grande mulher, mas a questão é que não se conquista nenhuma dessas coisas quando se quer qualquer uma dessas coisas. A questão que importa profundamente, que estabelece uma mudança crucial de comportamento é: como vou fazer essas coisas, como vou fazer qualquer coisa? Como vou me fazer no mundo? Como vou me fazer? Como vou me articular através das coisas, qualquer uma que seja, que eu faço? Não se trata de aprender a escrever, mas de como vou aprender a aprender escrever? Não se trata da escrita propriamente, não pode ser esse o fim, mas a escrita, no caso aqui é o processo e não o fim, a escrita é o processo, o artifício pelo qual vou caminhar em direção a como estarei eu me fazendo no mundo, como estarei eu me fazendo nesse pouco tempo que tenho de intermitência do meu batimento cardíaco?
Hoje entendi que “cuidar da fritadeira” foi o comecinho da minha investigação do diagrama “autópsia do real” de RES. Isso porque cuidar da fritadeira não era somente limpá-la, mas investigar quais seriam as articulações e providências necessárias para esse cuidado? A manutenção é o que mais importa, isto é, não importa ser gênio, não importa ser atravessado pela ninfa, mas qual a manutenção necessária que terei de fazer uma vez que sou atravessado? Qual a manutenção de mim necessária que terei de fazer uma vez que me foi dado o privilégio da vida? Ou ainda muito mais profundo (voltando para o lugar que tenho dificuldade), o que é mesmo cuidar de uma fritadeira – o que é mesmo a fritadeira em questão? Será que no fundo, a fritadeira não sou eu?
Realmente, finalmente entendi quando Fernando Pessoa diz que não há metafísica maior que comer chocolates: não há metafísica maior que limpar uma fritadeira. Ir e voltar de uma loja em uma região decadente de 1,99 atrás de potes de vidro para guardar os 4 litros de óleo… E quando achei que a tarefa estava enfim finalizada, com um enorme sorriso no rosto de tarefa cumprida, o pote de vidro escorrega da minha mão em frente à bancada da cozinha: que ingenuidade, a tarefa nunca está cumprida.
Talvez o que eu tenha entendido sobre o pote de vidro ter caído no chão e quebrado é que nenhuma tarefa nunca está mesmo cumprida. Esse é um dos motivos pelo qual Rubens vive diariamente na urgência. Não existe essa ideia de tarefa cumprida – essa ideia é para os fracos, para aqueles que querem pouco da vida e de si mesmos, para aqueles que vivem com uma ideia de finalidade das coisas, para aqueles carentes! O pote de vidro sempre vai quebrar no final da jornada. A pedra de Sísifo no final da montanha vai rolar montanha abaixo de novo. É um trabalho diário e constante de manutenção não da fritadeira, mas entendo bem mais profundamente, de manutenção de mim mesma e do desejo! Se não houver esse tipo de manutenção, o desejo vai criar outras formas para existir, vai se sorratear pelos becos sombrios de mim, e aparecer de maneira indesejada. Entender que o pote de vidro sempre vai cair no final da jornada é finalmente ver que minha vida está e estará toda por fazer.
Talvez o que me tenha ficado também mais claro hoje para mim é que não se trata mesmo de resolver a porra do óleo da fritadeira. Não existe fritadeira. Como não existe diagrama da autópsia do real. São todos a mesma coisa. Eu estabelecer uma diferença entre um e o outro vai fazer com que eu me relacione mal com ambos. Ou melhor, é o que justamente está acontecendo! O que está acontecendo não é que eu estou me relacionando mal com meus estudos, com a minha produção, o problema não está aí. O problema é que por estar me relacionando mal com as pequenas coisas como o pote de vidro para o óleo, isso vaza para qualquer outro lugar da minha vida, pois isso, o pote de vidro do óleo, é justamente todos os lugares da minha vida! A minha vida é um pote de vidro que preciso ir na loja de 1,99 comprar para guardar o óleo!
Dá pra entender inclusive mais porque o primeiro grande místico na Alemanha, Jacob Böhme era sapateiro. Ele na verdade nunca fez mística, ele só fazia sapatos muito bem! Possivelmente se alguém falasse para ele que era um grande místico, ele não entenderia nada!
E é por isso que hoje eu não quero ser artista coisa nenhuma, nem crítica, nem escritora, nem nada disso. Eu só quero ser capaz de cuidar bem dessa fritadeira.
Principalmente em relação a essa última aula de Gell sobre RES e Duchamp, sobre o gozo de começar a criar um fôlego para que a própria energia do estudo comece a criar um movimento próprio e assim entrar em uma zona interessante de possibilidades, isto é, de inferências, quando o estudo se transforma em uma ferramenta de pensamento, uma ferramenta para uma engrenagem funcionar, como um lubrificante de uma engrenagem. Há um fascínio em descobrir massas negras de mim ainda não descobertas, e perceber que há vida habitando elas – mas é necessário animar tais vidas de alguma forma, isto é, criar novos displays de mim para que essas tantas vidas sejam animadas. Sozinha é impossível.
Sempre desconfiei do que eu entendia do Duchamp, inclusive, do que achava já ser “profundo” de minha compreensão, sabia que essa suposta compreensão profunda não era capaz de manter tão solidamente um homem enquanto divisor de paradigmas na história da arte ocidental. Desconfiava disso que dizem ser a “manobra de Duchamp”, principalmente pois penso que uma manobra genial continua se desenvolvendo com o tempo, ele é como um organismo vivo, que vai se organizando de forma inesperada junto com as tantas variantes do tempo. Uma manobra genial é como uma máquina inteligentíssima, um computador quântico, que pode acabar respondendo de forma que escapa de nosso controle.
Me dei conta de que Duchamp foi desenvolvido até certo ponto; foi um artista que podemos observar como uma porta que se abriu, ou como ele mesmo fez, um buraquinho pelo qual se olha dentro (Étand Donné), e descobre-se todo um novo universo por vir. Ainda não descobrimos de fato (ao menos no que se diz por aí) a obra de Duchamp, isto é, o objeto em questão, o objeto material que ele lançou no mundo; acredito que seja possível ainda ir muito além do que já fomos, é uma obra que se desdobra de muitas formas. E é aí inclusive que percebo o início de uma profunda relação na obra de RES e de Duchamp. Acho que no geral, um artista poderoso produz uma obra que possui um impensado, isto é, possui uma aura que é maior do que o próprio artista poderia acreditar que ela teria; ele circunscreve um espaço com sua vida, e esse espaço desenvolve então uma vida própria. O espaço cercado com a obra de um grande artista passa a possuir uma vida que é muito maior que a própria vida do artista, e por isso, tal obra pode sobreviver ao tempo. Há então aqueles outros, que podem inferir da obra de um artista, podem amar a obra de um artista, quererem estar no mesmo lugar dessa obra, mas acabam por deixar escapar o que há de mais precioso dessa obra: uma vida que continua em desenvolvimento após a morte do artista, algo que foi salvaguardada pelo artista que permanece respirando mesmo sem sua presença física – é como se sua fisicalidade tivesse sido relocada para a obra, e por isso, como um corpo – nesse caso, não biológico – a obra continua se desenvolvendo sozinha, possibilitando, assim, uma possível imortalidade. O artista cria uma vida poderosa o suficiente para permanecer existindo e se desenvolvendo eternamente mesmo depois de sua morte. Isso em si, já é muito além do que pensamos ser “a manobra”.
Percebo isso fortemente no caso de Duchamp, apreendo sua obra como um sismógrafo muito sensível ao tempo futuro, quase como uma carta que foi endereçada a um tempo que não era dele, lançada em uma garrafinha ao mar, para que alguém a pegasse e fosse capaz de pensar o seu próprio tempo – tempo este futuro não somente de Duchamp, mas um tempo que sempre estará à frente de nós. Quem sabe isso também constitua a manobra de um grande artista e de uma grande obra, que tem o poder de se alterar conforme o tempo for passando, ela nunca se torna obsoleta em relação aos tempos futuros que a esperam.
Duchamp foi muito sensível em captar a miséria do homem, e ainda, em entender como ela poderia se agravar com o display da arte – isto é, um dia arte foi um display possível para o homem ser um ser humano melhor, mas me parece que hoje esse display mudou de lugar, e acredito que Duchamp tenha pressentido isso vigorosamente, ou ainda, Duchamp sabia que arte não se tratava do display que pensamos ser arte, a arte vai criando o seu próprio display para existir, da forma como ela bem quiser. É interessante pensar como um artista, ou um homem sério também sabe dos seus limites, até que ponto ele pode ir para realmente ter um poder real de mudança social, mudança matérica no mundo, e não somente o “poder” de fazer um trabalho – um grande artista está na ficção, então, por mais absurda que possa ser uma ação, ela transita entre a sintaxe ficcional e o tempo atual, sendo assim, tudo menos um delírio – o grande artista inventa a partir das leis desse mundo, uma nova configuração das leis para poder existir, para poder dar o testemunho e permanecer vivo.
Quando Duchamp diz “prefiro respirar a trabalhar”, claramente o que ele está dizendo é que ele prefere trocar com o mundo ao invés de impor coisas a ele. E ao trocar com o mundo, ao dialogar, ao negociar com o mundo, ele pode mexer de fato no mundo. Esse é o primeiro ponto em que percebo um desenvolvimento muito palpável da semelhança de Duchamp com RES. RES hoje aprende vendo o mundo, aprende no exercício de diálogo com o outro, com o outro do outro, com o futuro inclusive do outro – poder agenciar tal fala que depois de anos pareça começar a fazer sentido. Onde a fala, nesse caso, é como uma carta endereçada a alguém que ainda não existe, mas a partir do momento em que a fala é proferida, ela já é uma projeção, uma prospecção dessa pessoa que está por vir, quem ouve a fala é um tempo futuro meu, sou eu em estado de futuro de mim. Uma fala muito matérica. Uma fala-transformação.
Ambos não estão interessados em dizer para esse tempo, dizer para esse tempo agora, ainda que o momento presente seja tudo que eles têm para ser consumado. É uma fala também endereçada ao tempo necessário para resgatá-la, tanto o tempo necessário de cada sujeito, quanto o tempo necessário do próprio mundo, o mundo tem o seu próprio tempo necessário de assimilação. Acredito que RES seja, dessa forma, uma exigência do tempo para receber essa carta; chegou a hora em que a carta precisava encontrar um receptor. Tem horas que algumas coisas parecem precisar existir, e é com esse tempo que a fala de RES e de Duchamp dialogam e se encontram. Há um encontro em uma grande mesa redonda de muitos homens dialogando juntos com o tempo; e RES também, muitas vezes inventa essa hora futura necessária de existir no próprio presente. A própria urgência de sua fala faz com que eu encarne o meu próprio tempo futuro para recebê-la. Quem sabe isso já seja um elemento que Duchamp não tinha – quem sabe isso não era uma questão de seu tempo – mas acredito que esse elemento de RES diz respeito à urgência desse tempo mítico para a sanidade do homem.
Assim como os cientistas inventaram um ambiente ideal para que fosse possível o desenvolvimento de um computador quântico, “Somente nessa temperatura (272,99°C) é que as propriedades quânticas dos materiais se manifestam1”, RES inventa esse tempo futuro urgente em sua fala, inventa as condições ideais para que “suas propriedades quânticas se manifestem”, não somente suas, mas acredito que sua pedagogia, seu méthodo esteja fundamentado nessa invenção de condições ideias e novas para que propriedades em latência do sujeito possam se manifestar. Assim, sua fala possui uma carnatura, possui sangue circulando por entre as palavras, não é uma fala que diz algo, mas é o próprio tempo de compreensão, de corpo maduro de mim rasgando o meu tempo presente para que alguma coisinha possa começar a entrar. É mesmo como uma violação, uma violação de um lugar receptivo de fala; ele convoca uma agência em meu corpo para receber sua fala, e desse modo não a recebo passivamente, mas já estou me agenciando no próprio ato de ouvi-la. Ouvi-la é um processo de agenciamento em meu corpo, um processo ativo diante da vida. Quem sabe seja essa a manobra descrita por tantos críticos e teóricos e pelo próprio Duchamp relacionada à 4a dimensão em sua obra – ainda que todas as abordagens foram de modo muito descritivo, acredito que RES assimila essa 4a dimensão no momento em que ele convoca o próprio ato de comprometer-se ao falar, isto é, no momento em que ele devolve a carne ao verbo. Estabeleço essa relação principalmente por conta do que ambos foram capazes de articular, de movimentar, da capacidade de “gerar calor” de ambos no ocidente, na prospecção de um novo homem. É como se houvesse um diálogo profundo no objeto em questão de ambas as obras.
Os meios de transmissibilidade e elaboração teórica de uma articulação tão profunda como a de RES e a de Duchamp são realmente escassos, principalmente pois ficou claro para mim que a “manobra de Duchamp” está mais para uma manobra ritualística dentro das leis do ocidente, do que necessariamente uma manobra institucional ou da “descentralização do objeto de arte”. Apesar da manobra de Duchamp passar (ter que necessariamente passar) pela nossa “instituição de arte”, ela dialoga com instituições muito mais complexas e não necessariamente “oficiais da arte”, e sim com instituições oficiais do homem e de suas relações nesse planeta.
Acho perigoso pensar a manobra de Duchamp como simplesmente a ideia da “descentralização do objeto”. Estamos muito apegados a uma ideia de objeto, e é urgente mesmo um trabalho de desfamiliarização dessa ideia tão limitada que temos de que o objeto é a pintura, o desenho ou o mictório. Inclusive, no caso de Duchamp, nem acho mais que o “objeto em si” seja a manobra, mas a “manobra” foi um dos preços que ele teve que pagar para poder gerar calor nos intervalos de suas relações. A manobra foi mais o display para o objeto, do que propriamente o objeto em questão.
Ainda sobre a descentralização do objeto: não significa que a manobra seja mais importante que o objeto – acho que esse viés de conclusão da obra de Duchamp está muito equivocado. O objeto sempre será fundamental, a questão é a de identificar do que se trata mesmo o objeto. O que é a coisa que chamamos de objeto? Quem sabe, anteriormente a Duchamp o objeto é que estava descentralizado, ou então reduzido a uma superfície bi, ou tridimensional. Acredito que Duchamp resgatou a possibilidade de vermos um objeto que está lá o tempo todo, mas que é invisível para os nossos olhos.
“O que nos parece um paradoxo ou contradição para nós é na verdade uma miopia no modo ocidental de pensar”.
Holger Kalweit em Shamans, Healers and Medicine Men.
Tradução feita por Anna Israel
Acho que, assim como Hilma af Klint, que foi uma esotérica, não sabemos nada do que foi mesmo a obra de Duchamp, tampouco sabemos ao certo sobre a obra de RES – são coisas que vão permanecer atuando profundamente no homem ao longo do tempo, ainda que não saibamos ao certo como, ou por quais vias.
Por isso, finalmente posso esboçar um pouquinho da minha inquietação diante dos desenhos de RES, bem como de sua manobra, já que não se tratam de desenhos que não sabemos ao certo como foram feitos, mas de “desenhos” que estão sendo feitos naqueles momentos em que nem suspeitamos estar havendo ação, desenhos que acontecem na tessitura dos nossos sonhos, desenhos que cerceiam o que nos é oculto, mas ao mesmo tempo terreno, o que é imaterial, mas absolutamente material; desenhos que proporcionam uma outra dimensão de se relacionar com a vida.
PARTE I
(ou uma breve introdução visando um início de organização dos lugares das coisas)
Fiquei pensando sobre o pouco que entendi do que a Manu falou, sobre o seu desenho ter a mesma força que o “Ma Loute”, de Bruno Dumont. Mas eu discordo, particularmente acho que esse desenho não tem nada a ver com o filme do Bruno Dumont, claro que posso estar sendo leviana, e até mesmo arrogante, mas o Bruno Dumont sonha com o seu desenho, ele sonha que isso seja possível, mas não sei se realmente acredita que ele mesmo possa fazê-lo. Acho importante essa incisiva observação neste texto, pois acho urgente sabermos separar as coisas, não de forma maniqueísta, mas de forma mesmo que possamos entender como uma coisa pode alicerçar a outra, e como uma coisa realmente dialoga com a outra. Acho importantíssimo sabermos discernir uma coisa de outra, para podermos inclusive não somente ver melhor as coisas, como entender, o lugar de cada coisa, e como o fato de cada coisa ter e saber de seu próprio lugar é imprescindível para que algo possa acontecer.
Eu acho seu filme brilhante, acho “Ma Loute” brilhante, mas principalmente sobre um ponto de vista crítico. Acho que ele faz uma belíssima crítica de arte, do nosso tempo, da epistemologia miserável que nos apropria como um limo gosmento e perverso. Acho o filme de bruno Dumont uma previsão para tempos vindouros, uma aposta para um novo ser humano, mas acho que essas questões são só o início das questões no desenho de RES. Não há como não relacionar de imediato esse desenho, em particular, com o cinema do Tarkovsky – e é aí onde “saber ver” ganha uma dimensão que acho particularmente urgente. É mesmo um amuleto, um talismã, um objeto que RES traz para o mundo da presença, para este mundo que podemos ver, Rubens trouxe um objeto impossível para o possível, mesmo que ele nunca deixe de ser impossível, já que sempre será maior do que nós. Mas ser maior que nós é a grande beleza do objeto, e perceber espasmos de compreensão de algo maior do que eu faz com que eu mesma perceba que eu sou maior do que eu, que em algum lugar secreto de nós, esse desenho dialoga, esse desenho conhece e nós conhecemos, ainda que desconheçamos este conhecido; ele grunhe dentro de nós e desperta uma nova compreensão do que somos, ou, do que é em nós, do que existe de fato, que sou eu, para além de mim: a mais preciosa partícula de vida – apesar de supostamente insignificante nos dias atuais –, e que, sem ela, não existimos. Ela é humilde o suficiente para não necessitar ser notada ou ser “a grande estrela” do espetáculo o tempo todo, mas ela está lá, em seu quartinho minúsculo, escondido, no sótão de nossa morada, já que ela não precisa de nenhum quarto maior, não precisa possuir grande espaço, pois o espaço todo já lhe pertence.
Nesse sentido, compreendo a aproximação do desenho com o filme de Dumont, mas me arrisco em dizer que acho impossível um diretor francês fazer filme no nível desse desenho – os tempos são outros, a organização é outra, as configurações estão se reajustando, estão em movimento, as configurações estão em um momento de suspensão, seus elos estão suspensos, soltos, e em latência para serem reajustados. Bruno Dumont está fazendo um grande favor para o seu país, o grande pai do cinema, e esse favor diz respeito a destruir toda uma visão de mundo, mas Rubens faz um favor com a sua obra que não acredito que seja mais um favor ao seu país, não sei se sua obra tem país, acho mais que esse desenho também não é um favor, mas realmente uma obrigação. Rubens não tem saída, se o desenho fosse só desenho ou se ele fosse pelo seu país, já poderia ter terminado duas horas antes, mas o tempo e o caminho que ele, o desenho, ordenou que RES o levasse, faz com que eu abra mão de tudo que poderia vir a pensar sobre ele, já não diz respeito a esse tempo, muito menos a um país, acho que diz mesmo respeito ao mar, ao grande oceano que intervala as massas de terra, intervala os supostos “países”, os supostos “nomes”. O desenho não tem nome, ele é o que nomeia, ainda que “não idioma”, num idioma que nos custa a nossa existência identificada.
E voltando a deixar clara a minha visão sobre Bruno Dumont: não acho que o fato de seu filme não estar à altura do desenho de Rubens o desmereça, pelo contrário, acho vital a necessidade de existência de seu filme, mas seu filme não deixa de ser um filme deste tempo, uma previsão para tempos futuros, um mundo futuro menos doente, mas o desenho de RES não prevê um futuro para esse mundo, ele dialoga com um tempo mítico, ele proclama o impossível dos tempos. E o “Ma Loute” de Dumont é mesmo um sonho do seu desenho, é um desejo de que algo como o seu desenho seja possível, e quem sabe a existência de seu cinema seja imprescindível para gerar força em Rubens para a batalha de sexta, para que Rubens não deixe de acreditar no que é seu – já que outros homens estão cuidando da terra, Rubens deve comungar com as estrelas.
PARTE II
O que quero dizer quando digo que o Rubens não espera nada do desenho:
O desenho é quem espera por Rubens.
Que é também muito diferente de dizer que o desenho espera “de” Rubens. Quando digo que o desenho espera por Rubens, digo que há algo que sempre pode ir mais, esperando para que nós o encontremos, o desenho, já existe, já existe em algum lugar perdido de um mundo que não podemos ver, assim como o Rubens que vem a tornar-se após o desenho, também encontra-se em aguardo, em espera, em algum espaço. Há uma espera de nós em algum lugar, algo espera por nós, quem sabe a vida mesmo espere por nós, a nossa própria vida nos espera por ser resgatada. O desenho espera por RES, o desenho, espera esse encontro, onde RES deixa de ser RES e o desenho deixa de ser desenho para que ambos possam voltar a ser o que o tempo exige que sejam. Rubens, percebo, ouve esse chamado, ouve essa suave voz do chamado, como um canto de sereias, que embriagava os marinheiros na Odisseia; Rubens embarca-se em uma jornada sem se prender a pilastras com cordas tensionadas, Rubens distenciona as cordas justamente para assim poder instaurar a tensão real: a tensão de ter as cordas soltas, a tensão de não mais estar sob tensão, a tensão de não mais usar artifícios de tensão, de não mais usar artifícios para existir, para fazer, para se queixar; a tensão de um bicho solto, que suspende todas as regras para buscar a sua salvação, para buscar a si mesmo em uma jornada que pode não ter retorno – o desenho é o amuleto dessa jornada, é o que possibilita que seus pés continuem fincados ao chão, o desenho o conduz, ainda que o desenho ainda não exista, a coisa não existente do desenho é o que faz o próprio desenho, é o que sussurra ensurdecedoramente no ouvido de Res pra que ele não pare, para que ele continue seguindo o caminho no escuro da floresta, onde seus parceiros já lhe deixaram só, onde está só ele, e a coisa não existente o guiando.
RES ouve o que Homero chamou de “canto das sereias” e vai até elas, e a tal ponto descobre que as sereias não são mesmo sereias, Rubens descobre a real identidade das sereias, e negocia com elas o valor de despi-las, despir a fantasia através do seu desenho, e lentamente, arrancar de si mesmo mais uma camada de pele de sua própria fantasia no mundo. A cada conquista, ou a cada destruição, mais intenso é o cheiro do sangue de sua carne viva sendo exposta, a cada conquista menos identificado Rubens se torna de si mesmo, e ao mesmo tempo, mais próximo está de sua impossível identidade.
O desenho espera para que RES o inaugure no mundo, em três horas de sessão, de uma batalha; abre uma fenda no tempo para que o desenho se desenvolva, revolva-o da forma como ele bem quer vir a existir. E enquanto RES espera por algo, o desenho não vai existir, RES, pelo contrário, é aquele que tem que ir atrás, tem que desflorar as florestas virgens supostamente invisíveis diante de nós e resgatar o desenho para esse mundo. É uma batalha muito sutil, e muito violenta entre muitos mundos, entre as infinitas camadas de espaços invisíveis.
PARTE III
A grande desgraça do desenho (e particularmente muito difícil de entender nesse miserável tempo em que vivemos) é que ele usa RES, e RES se deixa ser usado por ele, não existe mais RES, não existe mais Rubens Espírito Santo nem para ele mesmo, não existe essa identidade, ela é entregue ao devir que veio cumprir nessa Terra, ou que, para tentar ser mais material, entrega-se a ser mesmo somente uma criatura, parte integrante dessa tragédia: deixa de ser insignificante ao voltar a ser somente um ínfimo da realidade: qual outro significante além desse? O modo como RES salva-se de sua insignificância é entregando-se mesmo à ela, para que o ser insignificante ganhe tal forma, tal força, tamanha dimensão de lucidez de desidentificação, que volta a ser somente um sopro de vida que veio articular-se por ele. Ou mesmo esse “por ele” nesse contexto não faça mais sentido, pensar dessa forma já é cindir as coisas. Ele mesmo é esse sopro de vida, nós somos um sopro de vida de coisa que veio à existência, rompeu com a latência dessa existência de nós mesmos para existir, então por que há a cisão, meu Deus? Talvez a cisão seja o que faça a coisa ter charme, é o que gera a graça, é o que insufla a vida de beleza, se soubéssemos da vida o tempo todo não haveria vida para se maravilhar, a vida seria um tédio permanente ou um gozo permanente, e assim, deixaria de ser também qualquer uma dessas coisas. Quem sabe a maravilha da vida seja mesmo que ela será sempre maior do que nós para que nós nos seduzemos por ela. A desgraça está em não termos mesmo escolha, está em nos darmos conta de que a consciência é um campo de concentração do qual nós somos prisioneiros, prisioneiros de uma vida que espera por nós, nós não podemos esperar nada da vida, ela é quem nos espera. Sendo assim, o desenho de RES, Dedicado ao Fedro de Platão é a desgraça da vida, sendo a desgraça a maior maravilha que temos, a de ser uma antecedência de nós. O desenho é um grande senhor que impede que RES deseje, não há mais desejo no desenho, existem ordens, existe o próprio caminho de condução que ele mesmo ordena RES a seguir. Não se trata mais de plástica, não se trata mais de arte, de desenho, de nada do que podemos nomear, já que o desenho é o que nos nomeia, e desesperados, tememos ouvir a enunciação, a proclamação de nós mesmos que essa criatura declama. E mesmo que quiséssemos, estar diante desse desenho já é o suficiente para que se inicie um eco em nosso ouvido desse nome sendo proferido. Estar diante do desenho, mesmo que por um segundo, já é tempo suficiente que ele precisa para infiltrar-se no mais minúsculo poro de nossa pele e fazer de nosso corpo sua morada; (por isso que colecionar é algo tão sofisticado, uma vez que a grande obra de arte coleciona a nós constantemente, nos assalta de nós, e ter pertencimento mesmo de uma obra, é entrar em negociação com esse assalto), este, acredito, é o poder de uma obra de arte, despertar e acumular a dívida da vida que nos espera.
PARTE IV
Existe um momento onde claramente a matéria parece ceder a RES, ceder à sua vontade, mas me pergunto, que vontade é essa? O que mesmo esse momento, o que acontece nesse momento? O que significa a matéria ceder? Acredito que tenha a ver com um pacto, uma grande negociação, onde RES precisa provar à matéria quem é que está a implicando, e para provar isso, não se pode haver desejo algum, ele não pode esperar nada da matéria, ela não pode sentir qualquer resquício do desejo de Rubens, o que RES tem que fazer, é despossuir-se por completo de seu desejo, despactualizar-se com toda a sua erudição, e vir a negociar com a matéria enquanto também matéria. A matéria tem que sentir que Rubens é um igual, tem que saber que sua implicação é impessoal, que Rubens é somente o mensageiro de uma implicação, é somente um veículo de tal implicação. Neste momento, a matéria cede, e RES parte a articular-se nela, pode então realmente enlaçar-se nela, onde a matéria e Rubens, só aí, voltam a tornarem-se um, um corpo somente, nesse momento instaura-se o diálogo, mas para haver diálogo, é preciso uma exaustiva construção de confiança entre ambos, onde fica claro que um não deseja nada do outro, os dois precisam vir a existir juntos, como coisa só.
PARTE V
Sobre a pós batalha de vida e morte – falar sobre a luta pela vida de RES no desenho, o que está em jogo é sua sanidade.
Mas do que se trata isso? Que sanidade é essa, como não dizer o oposto? Por que um homem que passa três horas desenhando diz estar lutando pela sua sanidade? Gostaria de focar nessa palavra, sanidade. No desenho Rubens luta por uma sanidade, sanidade de sair de uma alienação dele mesmo, ou, poderíamos pensar sanidade também enquanto um estado de estar mesmo a serviço de algo, de deixar-se agir como as ondas do mar que são movimentadas pela Lua, ou mesmo a Terra em relação à Lua, o giro da Lua em torno da Terra é feito por conta de uma inteligência da mente da Terra, a Terra em si tem uma mente, a Terra em si pensa, e isso destrói imediatamente qualquer vulgar ideia de que nós pensamos, do que é “pensar”, e algo parece ficar mais claro em relação ao momento em que se percebe “sendo pensado”. Acredito que lutar pela sua sanidade seria na verdade lutar para deixar de pensar, e ser pensado, ser pensado pela mente do planeta, se deixar ser um instrumento, um órgão de um corpo muito maior do que ele. Acredito que isso refere-se a uma sanidade que RES busca em desenhar. Onde o oposto de sanidade aqui não seria a loucura, aqui o oposto de sanidade seria a autonomia. RES deixa com que a mente da Terra conduza as suas ações, e assim, só assim, pode voltar a ser são.
Parece uma grande contradição mas de algum lugar que desconheço profundamente em mim, sei que não é, sei que essa sanidade se trata de um abandono profundo, de um abandono, finalmente um abandono de si, é uma luta feroz contra a matéria de si mesmo, que quer resistir, tão erudita quer estar no controle, quer ser maior, quer se sentir significante, é uma grande batalha em direção à sua própria insignificância: eis aqui a vitória da batalha de RES, eis a sanidade que Rubens busca nessa saga: a insignificância. E quando a matéria cede à vontade do artista, o que estamos dizendo é que o artista cede à vontade do tempo, cede à vontade do que algo quer dele enquanto homem.
Gostaria de frisar que aqui apresento questões depois de 9 anos no Atelier do Centro, tanto enquanto discípula, assim como parceira na construção do Méthodo
Começar já com esse item: o discípulo é um parceiro na construção do méthodo e na construção do mestre. Aqui já rompemos com uma ideia centralizadora de poder, onde o professor é o agente ativo e o aluno passivo – rompimento da ideia de um palco ou pedestal para aquele que ensina, e o outro lado para aqueles que escutam. No Atelier, todos “sentam à mesma mesa”. Já posso a partir disso também criar muitos subitens: escuta / agente / poder / rompimento – são todos esses conceitos desenvolvidos diariamente na prática no méthodo (ou melhor, não há dizer “na prática no méthodo”, pois o méthodo em si é a própria prática de algo). Voltando ao foco desse item: não existe professor sem aluno – isto é, o aluno ensina o professor sobre o que ele mesmo é, o aluno no méthodo é fundamental, pois o méthodo não é um sistema de regras fechado, enrijecido, cristalizado, muito pelo contrário, o méthodo é uma tecnologia em constante transformação, uma tecnologia quântica, que se autocorrige, que pode seguir um caminho completamente imprevisível (ou aparentemente imprevisível). O méthodo em si se aprende com o sujeito, seja professor, seja aluno, o méthodo é o organismo vivo que ensina ambos a lidarem com ele, é um fio de Ariadne de retorno de nós mesmos.
Preocupação com hierarquia, ou fim dessa ideia ingênua de “horizontalidade”. Sem uma voz de comando não há trabalho sério – precisamos entender isso não de forma despótica, mas como um próprio mecanismo de funcionamento do nosso organismo fisiológico e mesmo psíquico. Uma voz de comando é extremamente necessária. Sempre há uma voz de comando, sempre há hierarquia, então não vamos fingir que não há. Resolvendo essa questão, as coisas ficam mais claras, mãos transparentes, sem segredo e sem entrelinhas. Somos um país que tem muito medo ou vergonha de falar de coisas óbvias, falar das coisas que são constrangedoras e por isso vivemos em uma constante fantasia.
É importante também delimitar os níveis em que cada um está, para também gerar competição, e a competição aqui não é mesquinha, mas é uma estratégia para se gerar ambição.
O méthodo possui diversas camadas – ele serve tanto para o mestre quanto para um jovem de 15 anos, ele se molda em relação ao sujeito, ele entende as demandas reais do sujeito, ele é orgânico, antidespótico, antiautoritário. O sujeito é quem vai apresentar ao “méthodo” o modo como o méthodo lidará com ele. Sistema dinâmico irregular. Infinitas variantes. Não há um caminho certo, mas isso não significa que há desvairia – um não é o oposto de outro – no meio do caminho entre a norma e a loucura há o méthodo.
Há sim um caminho espiritual. E há sim a possibilidade de se atravessar o fantasma, diria ainda que atravessar o fantasma seria inventar uma nova cultura de si mesmo, seria entrar finalmente na sintaxe do fantasma, seria ser imbuído da potência do fantasma. Há um caminho para isso. Podemos sim ser melhores do que somos, podemos sim fazer passagens, lavar a roupa suja de décadas e décadas de antepassados impregnadas à nossa pele.
O méthodo não é imediatista – é estratégico, tem fôlego.
Escuta: muito importante. Há vários níveis e tipos de escuta (para citar as mais primárias e mesmo assim esquecidas nos dias atuais):
Escuta do outro: sendo ele aquele que se apresenta para fora de você, e não o outro que pensamos ser o outro, não a nossa ideia do outro.
Escuta do corpo: ser capaz de conhecer minimamente seu corpo, entender quando algo funciona e quando algo não funciona. Ouvir quando o corpo está sendo prejudicado, ouvir quando o corpo está pedindo socorro, ouvir quando o corpo precisa parar, quando o corpo precisa de recursos.
Escuta do sintoma: ser capaz de minimamente ouvir quando uma ação é minha ou é da minha mãe, quando é do meu pai, do meu país, da minha insuficiência – ser capaz de escutar as diferentes línguas que falam dentro de mim para eleger a língua que quero falar.
Escuta das demandas externas e escuta das demandas internas — saber diferenciar uma da outra.
Escuta do que o outro está realmente pedindo ou dizendo — o outro diz algo mas o dizer é ainda somente o display para outra coisa que está querendo ser dita. Em pedagogia, esse tipo de escuta é extremamente importante – mas só somos capazes de escutar o que o outro está mesmo pedindo se formos capazes de escutar ou eleger o que nós mesmos estamos pedindo de nós.
Claramente há algo insustentável nos tempos atuais – o ser humano não tem mais motivação, o ser humano não tem motivo para viver – há um problema sério aí – e me parece que para lidar com isso o homem está criando artifícios para ocupar o seu tempo de vida, o homem está ocupando um espaço vazio ao invés de consumando um tempo de vida, ao invés de consumando o próprio vazio consigo mesmo — a pedagogia tem que ser uma arma violenta para atacar esse mal – a pedagogia tem que lidar com questões reais do homem, principalmente do homem que em breve perderá muitos de seus empregos por robôs. O artifício para ocupar o tempo do homem, ou, o “emprego para sobrevivência” chegará a um fim – se não formos muito rigorosos em entender o tempo em que nos espera, ficaremos pra trás de nós mesmos, essas questões que se apresentam hoje só se agravarão no futuro. O próprio futuro está colocando o homem contra a parede e pedindo para que ele resgate o espírito.
Ser capaz de falar de coisas pessoais, ser capaz de ter distanciamento e falar dos podres – falar do podre é o início para se limpar do podre – assumir o podre, assumir o mal cheiro. Assumir o mal cheiro é colocá-lo para fora e ao colocá-lo para fora um espaço está sendo vago para questões impessoais, para vínculos com o ofício.
Tríade: o pré-gato — o gato — pós-gato // realmente adentrar o estágio do gato e suportar esse lugar por anos já é estar em um nível muito alto – investir em destrinchar melhor o que é o gato. O gato é o “drible na pequena área”, como disse RES – sendo a pequena área toda a nossa condição em relação ao nosso país, nossa herança genética, nossos traumas, driblar essas questões que sobraram para nós driblarmos em um espaço de tempo muito pequeno que é uma vida – como driblar essas questões? Como atravessá-las? Qual a estratégia? Atravessá-las para onde? O que sustenta esse atravessamento? Qual o artifício? Qual o bote que usaremos nessa travessia? Qual o bote que cada um terá que criar? Alguns podem construir um bote, e outros podem construir um navio – mas quais mesmo têm os recursos para não naufragar nas tempestades dessa travessia?
Organização — se algo for vazar, tenha o lugar certo para vazar — dar nome aos bois, não se enganar, ser duro consigo mesmo, ser cruel consigo mesmo.
Capital — criar um próprio capital. Ganhar dinheiro não relacionado a ter um dinheirinho para sobreviver, mas ganhar dinheiro significa uma troca de riquezas. Ganhar dinheiro significa realmente valer algo, significa ter valor, construir um corpo, estar incorporado de uma moeda – fazer um bico não é ganhar dinheiro. Ganhar dinheiro é construir um corpo externo que enfrente o mundo. Ganhar dinheiro é construir um barco que tenha recursos para não naufragar na travessia.
Diferença fundamental entre o méthodo e “terapia”: não há uma questão moral no método, ou seja, as questões são tratadas aqui de forma sem moralidade, sem automatismo, e com uma vontade profunda de des-alienação. O que quero dizer é que não se trata de seguir à risca “normas”, e entender que fazer uma coisa não é melhor que fazer outra coisa; mas entender porque uma coisa funciona e outra não, isto é, onde a relação de uma pessoa com a escrita está entrando? Onde a relação de uma pessoa com o álcool pode entrar? As questões do méthodo são muito pouco determinísticas e por isso muitas vezes podem soar contraditórias para quem as ler de forma leviana. A questão é que a pedagogia na vida de um sujeito tem que entrar de forma orgânica – tem que haver sentido na vida do sujeito. E cada um é diferente do outro. Uma coisa que funciona para um pode não funcionar para o outro — mas considero de extrema importância esmiuçar as diferenças do méthodo para uma “terapia” – assim como a diferença de arte para “arte terapêutica” — não há nada de terapêutico no méthodo, muito pelo contrário, acredito que o méthodo busca “criar novos traumas para enfrentar traumas antigos” – sendo os novos traumas a obra. O trabalho de arte tem que ser a construção de um novo trauma.
No méthodo não há “apaziguamento” das coisas, muito pelo contrário, há guerra – o méthodo é uma ferramenta para poder ir para guerra.
Qual a diferença do méthodo e do Atelier do Centro? O méthodo é uma ferramenta para se operar dentro do Atelier do Centro – mas o Atelier do Centro não é um espaço na Rua Epitácio Pessoa, na verdade o Atelier do Centro tem que estar dentro do sujeito, portanto o méthodo é uma ferramenta para se operar dentro do sujeito. O Atelier é um rasgo, uma fratura, uma fratura fundamental no sujeito. O méthodo só serve para aquele que está fraturado, para aquele que está sangrando, para aquele que não tem mais saída.
O que é poesia ?
O que é fazer poesia ?
O que será fazer poesia para além da poesia ? Mas que para além é esse ? Como assim “poesia para além da poesia”?
Se há uma “para além de” algo então não me parece haver o algo. O algo tem que ser capaz de se sustentar por ele mesmo. A poesia não precisa de um “para além dela” para ser poesia ! Por pode precisar !
Não parece haver poesia coisa nenhuma !
Não se faz poesia , se faz vida, se faz calor, se faz erotismo, sedução, gozo, entrelaçamento, transa, volição, entrega, conversão , se faz vontade de estar vivo, de inventar saídas de ar … o nome poesia é só o nome que damos a essa qualquer outra coisa que se faz quando não está se fazendo alguma coisa que já tenha um nome. Existir no não-nomeação, viver fora do nome, eis aqui o que me parece ser poesia , eis a ficção : viver fora do nome é enfim poder ficcionar um nome , um código nominal que não é nominável , é inominável, e por isso damos a ele o nome de poesia , mas poesia é um nome que sem a coisa que a antecede , não diz nada. É uma palavra sem nome – portanto só a carcassa de um corpo sem alma. Corpo sem alma também me parece querer dizer: um corpo sem calor , um corpo frio , um corpo desapaixonado de si mesmo . E esquentar um corpo não é fácil , da mesma maneira que não é fácil esquentar a relação com o que gostaria de dizer aqui – mas o que gostaria de dizer aqui, na verdade não tem a ver com o aqui , com o texto , com as palavras , mas tem a ver com escrever-me de volta para dentro de mim, tem a ver com acionar as chamas do meu próprio corpo : eis o que gostaria de dizer aqui. Portanto esse dizer não se trata de um dizer comunicativo , não se trata de um dizer no texto, mas o texto é que irá dizer em mim. Este texto na verdade é um pedido, um suplício para que eu volte a dizer-me em mim. E para isso, preciso dar algo em troca para o porteiro do texto, e essa coisa é o próprio texto.
Portanto o aqui por ora, esse texto , essa escrita , é uma tentativa não de gerar calor na escrita ! Que erro o meu querer pensar deste modo, esse modo é totalmente predatório ! O que eu quero aqui mesmo, o texto em questão , é um dispositivo da chave do disjuntor do meu próprio calor ! Acionar o texto significa na verdade acionar o motor de mim mesma . Aquecer minha engrenagem . Não deixar a máquina parar de rodar. E quando digo não deixar a máquina parar de rodar, não estou me referindo a uma morte literal , mas estou me referindo a não me deixar tornar-me uma carcassa da minha própria palavra sem vida, sem alma, sem ânimo, sem paixão , sem tesao , sem amor , morna , amordaçada ; deixar a máquina parar de rodar significa me deixar cair no estado de ser uma palavra sem nome, um estado de ser uma palavra que não diz nada, uma palavra sem contexto , e o meu contexto é justamente o meu calor ! É no meu calor, na minha efervescência que encontro meu contexto, meu texto que me antecede , e que precisa desse texto aqui para poder existir para fora de mim , e desta maneira construir minha morada do meu próprio contexto no mundo: fazer do meu calor, a minha morada.
Caminhando pela minúscula cidade Marmaris, na região popular e não turística dessa cidade turca portuária, encontrei um pequena loja que vendia produtos orgânicos de todo tipo. Entrei e perguntei se podia tirar uma foto, um velhinho que de início julguei como rabugento, me olhou e falou qualquer coisa em turco, não saiu de sua cadeira, mas por algum motivo senti uma espécie de receptividade em sua fala. Fiquei olhando os produtos e perguntei em um inglês com sotaque turco a função deles, ele só me respondeu em turco, fez comentários sobre os produtos que eu olhava, gesticulou a função do sabonete esfregando suas mãos pelo corpo e fazendo um som no final de muita satisfação, algo como “ahhhhh” e levantava os braços.
Lá haviam vários potes de mel, de diversas cores, e eu me lembrei que em toda ilha que paramos, há sempre muitas abelhas, e lembrei do filme documentário Honeyland – o que me fez entender que estou em uma região que tem muita abelha e muitos produtos da abelha. Junto com os potes de mel haviam outros potes, um em particular com uns sedimentos amarelos e um adesivo com um desenho de abelhinha nele. Perguntei o que era com meu inglês com sotaque, e ele respondeu, e dessa vez gesticulou que era para comer, levando sua mão até a boca e fazendo em seguida aquele mesmo som de satisfação, “ahhhh” levantando suas mãos. Eu continuei olhando o pote, e ele se levantou e veio até mim, abriu o pote, colocou em sua mão e comeu. Em seguida, pediu minha mão e me deu um pouco para comer. Caiu muito em minha mão, isso me deixou um pouco apreensiva. O sabor não era bom, certamente eu fiz uma cara feia enquanto mastigava, tentando disfarçar e ao mesmo tempo fazia um “sim” com a cabeça, como um modo de mostrar aprovação ao que ele tinha me dado. Enfim ele pronunciou uma palavra que eu entendi: pólen!
Selecionei outras coisas e depois levei até ele – e foi quando ele puxou um banquinho com uma pequena almofada já bem murcha em cima e me convidou para sentar dando dois tapinhas em cima da almofada. Fiquei lá sentada assistindo ele embalando cada um dos produtos. Embalou um por um, e enquanto embalava me contava alguma história em turco, muito interessado em me contar, olhava para mim enquanto falava – talvez estivesse falando sobre os produtos, sua loja, sua esposa, sobre suas dores, eu não sei. Só sei que eu respondia com alguns “ahhhhs” e “wow” e ele dava risada. Lá estava eu e o velhinho turco, por um tempo que realmente se suspendeu, sentados tendo uma conversa em uma língua que nem ele nem eu conhecemos, mas por algum motivo, a gente estava se entendendo.
Quando me levantei para ir embora, disse em turco obrigada, teşekkür , e ele mostrou enorme felicidade! Ele então pediu que eu esperasse, falando “sorry” em inglês (que significa na verdade “desculpe”) várias vezes e gesticulando que eu esperasse, até que ele pegou um pote super antigo com uma flor na frente e pediu que eu fizesse uma trouxinha com as mãos. Mais uma vez, ele antes, passou virou um líquido transparente em suas mãos e em seguida na minha, ambos esfregaram as mãos e em cheiramos o perfume forte de lavanda que vinha do líquido.
Me despedi, ele foi até a porta comigo, e quando saí da loja lá ele ficou. Depois vi que ele pegou sua cadeira e colocou na entrada da loja, se sentou e ficou vendo a rua.
Com essa história, me pergunto: o que mesmo estamos falando um com o outro? Qual o sentido de termos a mesma língua? De falarmos línguas supostamente as mesmas? Confesso que nesses dias todos no barco com a minha família, que supostamente fala a mesma língua que eu, não tive nenhuma conversa tão profunda como a conversa que tive com o velhinho turco. Falar é mesmo um dispositivo que pode ser usado de forma muito carente, como um entorpecente, que impede a gente de estar acordado, de acordar. O que é maravilhoso sobre não falar a mesma língua que outra pessoa, é que na verdade só o essencial será dito e compreendido: o que eu tenho que entender, meu corpo entenderá!
O que me fascina também com essa história e que resume a entrada nesse novo momento da minha vida é: como contar essa mesma história, mas com a língua que foi conversada entre eu e o velhinho turco? Como abandonar esse português que me foi ensinado para contar essa história, e transpor o tempo que se suspendeu enquanto nós conversávamos em sua loja de produtos artesanais turco? Ou ainda, talvez como fez a Virgínia Woolf em Mrs Dalloway, como entrar tão fundo no velhinho turco e na jovem brasileira comprando produtos artesanais em sua loja, de modo que o próprio português pode ser qualquer outra língua? Virgínia Woolf mergulhou muito fundo na história de seus personagens, mergulhou em suas memórias, em seu estado de espírito, suas angústias, aquelas coisinhas suscetíveis às falas dos outros; ela virou o ser humano do avesso ! E claro que pra isso ela mesma se colocou em seu próprio avesso. Por isso entendo que esse momento que se inaugura não se trata de encontrar uma nova forma de escrever, mas o de inventar uma nova forma de ser – me colocar ainda mais no meu próprio avesso para que essa forma já obsoleta seja descartável para mim mesma, para que junto desse novo corpo, uma nova fala, um nova escrita, uma nova aula, uma nova plasticidade de mim se forme.
Fiquei pensando hoje sobre o que de fato seria a minha natureza, o que mesmo eu vim fazer nesse mundo? Por que mesmo nasci nessa família? O que é meu, que é só meu?
Fui à praia bem cedo na manhã, ela ainda estava vazia, e com isso a sua conotação “turística” era quase nenhuma, muito pelo contrário, vi a praia como se eu fosse uma estrangeira na terra, fiquei absolutamente maravilhada. Fui então lentamente me aproximando do mar, desse organismo tão estranho, tão desconhecido – apesar de lidarmos com ele de forma tão corriqueira -, e ele me chamou para entrar. Fiquei um tempo boiando olhando para o céu, este que também me recebeu radiante, limpo, sem nenhuma nuvem sequer filtrando o sol. E bem em cima de mim estava a lua, na metade, me senti saudada por ela, como quem vai sempre ao mesmo café e tem lá aquela mesma pessoa que te serve e te vê, e sabe seu nome, e repara seus gestos, e já te viu chorando, já sorriu para você até que um dia você finalmente olha de fato para aquela pessoa e a percebe. Hoje senti que foi essa a minha relação com a lua, onde ela sempre está lá me servindo e só hoje olhei para ela e a percebi.
Ao percebê-la, me dei conta que o meu desejo não tem nada a ver com “entrar para a história da arte”, ou “ser uma grande artista”, “ser uma grande artista mulher brasileira”. Não é e nunca foi isso o que realmente quis. E a verdade é que de algum modo eu sempre soube que não era isso, sempre soube que havia qualquer coisa de errado na construção lógica ou temporal dessa frase. Quem sabe seja até por isso que até hoje eu sentia algo levemente errado com a minha relação com a minha produção plástica propriamente. Sempre senti uma pulga atrás da orelha, como se estivesse faltando alguma peça nessa equação.
Bingo!
A lua me soprou a resposta: o que desejo mesmo, do fundo da minha alma, o que é meu e só meu é a necessidade vital por ser um ser humano melhor, é o desejo profundo por não viver essa vida em vão, o desejo de não me relacionar com meu corpo somente como um instrumento de sobrevivência, ao invés do meu precioso tesouro que possuo, ao invés da chave do meu próprio tesouro mais precioso; o que desejo nessa vida é fazer as minhas passagens, é enfrentar a carência, enfrentar o sintoma de cara limpa.
O objeto de arte, evidentemente, entra aí como um artifício, como um instrumento, uma ferramenta que age a favor dessa construção, uma arma importantíssima dessa batalha. Acho que esse é o significado do objeto para um “jovem artista”, se puder chamá-lo como tal. O objeto é um possível caminho para um desvio do sintoma, um deslocamento da carência, ele tem que ser como um lugar da manobra, o espaço do “gato”, como Rubens por tanto tempo investigou, a produção para um jovem tem que ser o gato, e por isso, obviamente, tem que ter calor, tem que ter tesão, libido, tem que ter vínculo real, tem que ter urgência para existir; é necessário que a produção se torne uma questão de vida ou morte, só aí ela estará enfim instaurada no espaço do “gato”.
Há, porém, após o gato, um outro espaço, um espaço muito mais profundo: o “pós-gato”. (Indagação: Quem sabe, provavelmente algumas culturas “primitivas” devem partir do espaço do “pós-gato”, isto é, já partem de um espaço deslocado, por isso que se torna tão difícil para enxergarmos de fato sua produção, pois já partem de um espaço, de uma sintaxe, de uma linguagem que configura-se em um espaço completamente distinto que o nosso, ocidentais.)
O artista mesmo, ou o sobrevivente, como quis Warburg, é esse que atravessa o espaço do gato, é esse que faz a manobra do sintoma e imerge no espaço do pós gato. De tanto trabalho de deslocamento do sintoma, uma hora o sintoma vira, e ele se torna a própria coisa do trabalho, o sintoma se torna a própria pulsão do trabalho, o sintoma passa por uma transfusão genética. Uma hora, toda potência mística, toda potência da trieb do sintoma se torna a própria luz que irradia do objeto, e assim faz com que o objeto possua sua própria vida, possua seu próprio sintoma que é justamente o que o mantém vivo, é o que o mantém respirando, é o que faz dele um sobrevivente, é o que faz dele demoníaco, obra do daimon, pois é assim justamente uma obra então do sinthoma, uma obra daquilo que sustenta o próprio ser (indagação: se para Lacan, o sinthoma é o que sustenta a vida, então o sinthoma é também a própria pulsão de vida, faz parte da genética da faísca que nos mantém vivos) – impossível aqui não pensar nas pinturas negras de Goya que ilustram isso imediatamente, tanto enquanto conteúdo, assim quanto forma. São obras do sintoma em redenção, do sintoma fora de uma sintaxe, do sintoma podendo finalmente falar outra língua. E a forma da gramática do sintoma ocidental é altamente poderosa, por isso que são poucos os que conseguem fazer a manobra, e para aqueles que conseguem, para aqueles que conseguem cruzar o oceano do sintoma, enfrentar os ciclopes da carência é enfim chegarem na ilha do sinthoma vivos, resta-lhes a eternidade, a sobrevivência, a nachleben, a “história”.
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Acredito que de tanto se relacionar com o objeto, de tanto pedir algo para ele diariamente, de tanto trocar com ele, ouvi-lo, falar com ele, entender o que ele quer, entender o que se quer dele, um dia finalmente o objeto responderá. E quando o objeto de fato enfim responder (e isso pode levar uma vida inteira), sua relação com o objeto pode passar a ser de pura gratidão. Artistas como RES, Agnes Martin, Cy Twombly, por exemplo, chegaram em um nível de produção de si mesmo, junto com o objeto plástico, que a maturidade plástica, a relação deles nessa maturidade é de pura gratidão – e assim podemos chamá-los de “espirituais”. É um lugar de produção ou de relação com o fazer onde eles não pedem mais nada para o trabalho, não esperam mais nada do trabalho, simplesmente agradecem. O ato de fazer se torna assim um ato de agradecer. Eis o lugar do sinthoma.
E é isso o que eu desejo – desejo encontrar o sintoma em outra forma dele, com outra cara, cara a cara comigo. Desejo atravessar a minha sintaxe sintomática e me encontrar no avesso de mim.
Desejo um dia poder servir a lua de volta.
É isso o que vim fazer nessa vida.
Vivo para a construção de um corpo que um dia saberá agradecer.
A escolha em fazer essa cúpula de acrílico retangular imediatamente faz com que ela deixe de ser uma cúpula para o desenho, sendo então parte constituinte da construção de uma visão de mundo de Rubens. Isto é, a cúpula não é mais cúpula, mas é um abrigo, é uma questão de vida ou morte não para o objeto que está dentro dela, mas para o próprio Rubens, que é, também, o objeto. Rubens não vê mais objeto, não vê mais cúpula, não vê mais nada como é projetado pelo tempo para ele. Ele deixa com que a coisa se projete nele, e ao deixar as coisas o penetrarem, ele se torna um receptor, também, coisa nenhuma. Pois não é ele que vê, não é ele que nomeia, mas as coisas que se utilizam dele para poderem existir no mundo.
Fico pensando sobre querer copiá-lo, copiar seus procedimentos, inferir suas manobras e me dou conta de que não há como forjar um espaço psíquico, não há como forjar um acesso, não há como forjar o recuo vazio da cúpula de acrílico. Um objeto como esse não se trata mais de plástica, não se trata mais de “arte”, mas são escolhas na vida de um sujeito que vão o moldando para que essas escolhas sejam o motor de decisões futuras, as nossas escolhas são as bases de nossas respostas para a vida. Nossas escolhas respondem por nós. Por isso, acredito que Rubens opera tão rápido, por isso é tão rápido para RES olhar a cúpula e entender que ela precisa de um recuo, pois não é RES que decide isso, não se trata de uma decisão plástica, mas foram as escolhas que RES fez em sua vida que entenderam ser necessário o recuo.
Hoje, vendo essas imagens, sinto tremenda vontade em continuar olhando para elas, as pensando, refletindo sobre o que eu estou vendo nem que essa reflexão seja através de minha comoção, nem que a reflexão esteja no display de um tilt em mim, uma compreensão de que o que estou vendo não é um objeto de arte, e sim uma extensão de seu braço, uma extensão de sua alma, uma cápsula que contém sua atmosfera, o cheiro do ar que exala para fora de seu nariz, depois de percorrer por todo seu corpo. Esse desenho fede à atmosfera, ao cheiro que RES sente dentro de sua prisão. Nesse desenho posso sentir um pouquinho esse cheiro. Acho especialmente interessante essa manobra onde o desenho deixa de estar dentro de uma cúpula no momento em que Rubens a faz retangular, um prisma. Assim como Matisse acaba com a ideia de pintura enquanto objeto fechado quando pinta o atelier vermelho, a pintura, a tela, aquela superfície quadrada é “somente” uma plataforma para ele tomar decisões frente às quais sua vida está em jogo, a superfície retangular de Matisse é o display onde ele pode ser um assassino sem ser preso, ele já está preso – as decisões me parecem parecidas, não são mais plásticas, não são mais intelectuais, acredito que só são decisões vitais, decisões fundamentais para que a vida possa continuar em movimento, decisões fundamentais para desobstruir um sangue empossado do tempo, cada um em seu tempo, cada um com seu display.
Para um grande artista, as decisões que chamamos de “plásticas” são tão naturais e essenciais que o que entendemos por plástica ganha inclusive uma dimensão muito mais profunda, muito mais vital. Não acredito que um “nível plástico” possa ser elevado. O que se eleva é o grau de comprometimento com a vida de um sujeito, e isso movimenta suas articulações no mundo, isso é o que chamamos de um altíssimo nível plástico – já não tem mais a ver com plástica.
Penso que a decisão por essa cúpula dessa forma, nessa conjuntura me faz compreender – a cada dia vou fortalecendo mais um pouquinho a tessitura dessa compreensão – que RES não mais é um artista, e que não está interessado por arte, mas que está interessado quem sabe pela vida. Há algo seríssimo e muito profundo na escolha de não fazer a cúpula quadrada, da cúpula não ser o display do objeto, mas da cúpula fazer parte dele. A própria ideia de display para RES já é outra. O display para RES não é algo que vai dar valor ao trabalho, deixá-lo “digno”, dar brilho ao trabalho para o mundo, como a arte contemporânea entende o display. Quem sabe o Derviche só exista para que exista essa cúpula, esse espaço, essa prisão. Um é inerente ao outro. RES não arranjou um display para colocar o seu Derviche, não concebo esse movimento dessa forma, para que ele possa estar bem “emoldurado”. Mas RES inventou uma tecnologia para poder devolver ao Derviche o seu sítio de habitação – sua prisão. Só a prisão, somente aprisionado esse objeto pode repousar em sua liberdade. Fora da prisão ele está descontextualizado, fora de sua prisão ele não existe. Somente podemos existir através da impossibilidade de existir, só posso existir através da minha carne, do que me trava a existência, do que resiste, me impede. O interdito é o caminho. Já que RES despertou esse chamado, já que acendeu a chama do Derviche para o mundo, concluiu o seu trabalho dando a ele o seu único cômodo possível. Um pouco como nos rituais de umbanda, que oferecem aos santos o que eles mais gostam, um modo de fazê-los se sentirem em casa, um modo de lhes dar prazer, de deixá-los felizes. Esse objeto laranja que envolve o Derviche não se trata de uma cúpula, se trata de uma pele, um corpo. Precisa cuidar bem do que chamou, do que invocou, isso que invocou agora torna-se parte de sua responsabilidade, isso que invocou agora é um novo agente de suas escolhas.
1ª parte
De onde nasce uma palavra? Por que o medo tão grande em escrever, a mergulhar na trama sem forma do pensamento, da angústia, e deparar-me com as limitações evidentes de mim mesma existindo para fora da cabeça? Escrever sobre a cabana é um modo de enfrentar os lugares inóspitos de mim e dizer algo que não posso dizer, e então, esse dizer me sufoca, encontro nessa saga aquilo que mais temo encontrar: minhas próprias limitações – encontro nessa saga aquilo que tanto me oprime, minha fragilidade, e assim, desse modo, nesse encontro começo a poder ver com um pouco mais de claridade a cabana, uma palavra que se suporta para fora de seu sufocamento, uma palavra sangrenta em carne viva, a fragilidade de Rubens em manifestação, um judeu encarando um nazista e afirmando que é judeu. Uma palavra que precisa existir, que utiliza Rubens enquanto o seu transmissor, seu agente, agencia-se através de R.E.S., ou mesmo, R.E.S. se doa à existência da mesma, e doar-se a esse algo tem a ver com enlaçar-se, emaranhar-se na sua própria lama, atirar-se no abismo da insuficiência. A entrega a esse abismo da insuficiência é o ponto de partida para que algo possa começar a ter um motivo para existir – as soluções só começam a aparecer quando o problema se torna insustentável, e entregar-se a esse insustentável não deixa de ser uma aposta, não deixa de ser um suicídio, onde o homem deixa de ser o grande protagonista de sua vida, e entende que só pode ser um mero escravo da vida que lhe atravessa.
Se não houver sujeira, se não houver incomodo, se não houver profunda agonia, a palavra permanece em sua superficialidade, a serviço de nada, uma palavra vazia, uma imagem vazia, viver para sempre na superfície de si mesmo e com a equivocada ideia de que pode-se ser um inventor. Quem sabe não haja mesmo tal coisa, inventor é aquele que de tanto se expor ao seu intransponível, de tanto nadar em direção à sua miséria, transfigura-se em receptáculo e dispositivo para a invenção, o inventor é então somente um canal para que a invenção se dê através dele, e essa invenção se torna o oxigênio para poder respirar debaixo d’água, isto é, “invenção” é uma palavra vazia, o que acontece é o nascimento de algo, de uma solução para uma exigência vital. As coisas precisam de um motivo real para serem inventadas, para se encontrarem em sua trama inventiva, a palavra precisa de recursos reais para encontrar o seu motivo para sair de uma latência. Se não houver uma exigência para que algo se construa, não há possibilidade de invenção nenhuma. A cabana é uma junção de submeter-se ao mais trágico de si mesmo, expor-se ao seu sem saída, compactuar com a zona cinzenta de si e ao mesmo tempo fazer disso uma atividade, uma batalha, uma saga, um pacto com a faísca de vida que há em nós.
Com a obra de R.E.S. me fica evidente que a produção se torna a sua entrega à vida enquanto uma entidade própria, Rubens é um grande trabalhador que trabalha em nome de ser esse dispositivo para que sua palavra possa encontrar o canal de existência através dele, para fora dele.
Não há como fazer nada sem submeter-se às suas limitações, ao seu impossível; a cada limitação, a cada esmurro em uma porta de ferro, vão se criando marcas, e assim com o tempo rachaduras, e um dia, a porta se arromba – é assim que vejo R.E.S., e me pergunto: como um homem pode suportar sua própria porta arrombada sem se arrombar junto? Como ser um corpo vivo inteiro arrombando? O que me pergunto, muito intimamente é: como Rubens pode dar o testemunho e permanecer vivo, como uma obra pode conter tamanha contradição em ser ao mesmo tempo um suicídio e a a mais genuína forma de vida possível?
Rubens, é um corpo arrombado intacto, em pé, a cabana é o espaço que criou para poder negociar com o Diabo, para manter o Diabo bem próximo dele, R.E.S. constrói uma cama, uma beliche, pra que o Diabo possa se deitar em baixo dele e sentir-se confortável, R.E.S. constrói uma morada para o Diabo, uma arapuca para mantê-lo por perto, e paga um alto preço por isso… Paga o preço de não haver mais contradição, onde a contradição é uma palavra para aqueles que não veem, para os que choram por uma insuficiência – hoje Rubens chora por uma suficiência, por ter os olhos demasiado abertos, para ele não há contradição, não há caos, o suposto caos é o equilíbrio, é a morada do Diabo, quem sabe seja por isso que tão poucos a suportam; para se suportar a contradição, é necessário criar um mundo que a sustente, é necessário uma configuração, uma estrutura óssea suficientemente forte para dar corpo à algo que é só movimento.
2ª parte
A palavra não se inventa, a palavra é uma exigência, uma demanda, um grande bicho amorfo que hiberna no homem, que grunhe para adquirir forma, que grunhe pois, grunhir é por hora sua única forma de existir através do homem. R.E.S. não inventou sua palavra, mas a palavra é que o inventou, de tanto provocar esse bichão, tanto resistir à inércia, de tanto resistir à opressão da manifestação, como um guerreiro, entra em um mar, em uma tempestade em alto mar com seu grande equipamento de guerra e enfrenta a aridez da sua própria solidão, da consciência de sua incompletude, da consciência de suas limitações. A cabana, os desenhos, grandes, pequenos, textos, conversas, articulações, são todos o mesmo, são todos um universo de leis construído por R.E.S., uma só cabana, um só mundo dentro do mundo, mas não um mundo fechado, senão um mundo rizomático, um mundo com tentáculos, tentáculos conectados ao solo, que se alimenta da água que corre por baixo do solo, da terra, da água oprimida pelo frio da Catalunha, um frio que nada tem a ver mais com a temperatura, mas um frio de algo que está sendo deixado de ser feito, algo estancado, algo engasgado no tempo em que vivemos: a cabana assalta o catalão, assalta em 10 dias uma tradição já em ruínas que não nos serve mais para nada – a tradição cultural, erudita, genética, pouco importa, não podemos viver mais da história dos nossos antepassados, não podemos deixar o sangue dos nossos antepassados estancados em nossas veias, R.E.S. destrói as verdades, as falsas verdades que configuram um cenário de atrofia do homem nos dias de hoje – suspende os objetos de uma configuração predatória do homem, que o coloca imediatamente enquanto senhor, senhor de qualquer coisa, a Cabana des-hierarquiza o homem e devolve sua insignificância, ou seja, sua mais íntima identidade, e assim algo pode começar a ser construído.
I find myself thinking about language, and what precedes it, the construction that precedes the language that builds it and how language builds us at the same time.
I understood clearly that RES, or what we call “a great artist”, does not speak the same language as the others. And that doesn’t necessarily mean that the words are different, that the verbs are conjugated in an eccentric way, that the syntax is ordered in a “freer” way, but the entire structure of the language is different, and that means: the entire structure of life apprehension is different. Much like the “Brazilian way” may not make sense to a foreigner, for a great artist the border of understanding, apprehension, response to life that an ordinary, common being has, makes no sense at all. Our language is a DNA of who we are, and more, we are now prisoners of this language, if it permits such phrases to be articulated then it means that this articulation is part of our blood, our epistemology, our history, we are languages’ hopeless prisoners, while at the same time, we invented it, and it invents us.
In the same way the structure of Japanese is different, in the same way Japanese or Greek are untranslatable – not because we don’t have the same words, but because our being is structured differently, what is untranslatable is not a word, but it is the life that passes through the one who utters it.
I find it very significant that our language allows the construction of a sentence like “life doesn’t make sense”. I believe that the available syntax in our language for such an elaboration already says a lot about our illness and about our strife. Of course, Freud himself would say, the anguish builds the neurosis, and not the other way around, so I may construe a parallel in this problem to make it even more complicated: the pain is what builds the language, the anguish that invents the language, even if the language imprisons us. Logically, could you then conclude that “we have imprisoned ourselves”?
I wonder if for an esoteric, if for someone like Madame Blavatsky, this statement would have any logic: life is meaningless. I feel that somehow this statement exposes an arrogance, a man’s arrogance, an ancestral, ontological human arrogance in thinking he is in charge. As I follow RES, I realize that this elaboration does not make sense to him anymore, but not in a demagogic way, or because he built an art piece, or because he has many students, many projects, and because he doesn’t have “time” to ponder on such a thing. I don’t think that is the issue. But rather that all of these things come from a life structured precisely around a deep awareness of insignificance, of humility (although these are all terms and definitions by a young woman who is building a life to be unraveled, so these terms are probably not the best ones about his point of view), are circumscribed by a knowledge that he is not in control – life is the meaning, it is the only meaning we have, we are constantly wanting to assign mundane meanings to life, to assign vulgar and much lesser meanings to life. It seems to me that this is a question of logic: really, with the kinds of meaning that we clog up life with, it will never possess, because life is much bigger than this kind of meaning, attributing a vulgar meaning to life will make it, thus, not make sense. Meaning seems to be whispered in our ears day and night, we just need to wake up, we just need to be asleep, the world may be at war and the meaning of life will continue to whisper. What’s more, I don’t hesitate to think that wars are part of this sense, this logic, this web.
It seems to me more that it is a matter of discovery, listening to the clues that life offers us. Step back. We are the ones who are arrogant, the meaning of life exists in a grammatical structure far beyond our comprehension and because we cannot access it, we conclude that there is none.
The language we speak today is running through this affluent of meaninglessness, it is running through the tributary of a construction that deeply fears looking at each other, at our emptiness, our supposed “emptiness of meaning” and seeing in it the “brightness emanating from truth”, as Joseph Beuys would say. It is precisely in this emptiness that all meaning is found in latency, it is in this emptiness that meaning murmurs.
I believe that becoming an artist means entering this language, subverting the laws of a language imposed by a country, a society, a time, and with the resources of that language, transfiguring it, so that it dialogues, so that it fits in a language that is far more subtle, in the language of the senses. The “meaning of life”, you could say, is its own language, it is a language in itself, it has its own codes, its laws, its syntax, grammar… the beautiful thing is that this languages’ vocabulary, the words that exist in this language are very ordinary, the vocabulary can be each human being’s subjectivity, the display is irrelevant: gastronomy, painting, text, juggling, shoeshine, peasantry, it doesn’t matter, there is no correct display, even, the very display constantly wants to be created. The display is undone, humanity will always be undone, or as Jimmie Durham says, “Humanity is not a completed project”.
But this meaning, this language I am referring to, does not reside in the binary vectors of yes and no, of haves and have nots, of sanity and madness. This meaning is not in opposition to something, RES is not opposing a system, or time, but within that time, within the resources that time offers, he transforms them into something else, he returns fleeting time itself to the ontology of time, the present that escapes us, the possibilities in latency, invisible to the obstructed eyes from the truths that we have constructed and that have been imposed on us.
What then seems particularly serious to me is that these meanings of life were all imposed on us, the course of life seems to be only one, the course of life seems to be already pre-established, the professions have already been taxed, the order is only one, relationships follow a script, a speech, a thought, a behavior, an education, all of these are already guided by a script from that time. I intuit, however, that we create all these truths because we cannot stand the grotesque emptiness, we cannot stand to be castaways, we cannot* stand not being in control, so we invent false controls through names, directions, professions, knowledge, recipes, scripts, anyway, a model of society and life, a very specific purpose for existence. (It’s really nerve-racking).
The question that really fascinates me, and which I believe has a lot to do with having life density, those closer to knowing are the ones who have endured the volume of life by destroying, breaking up, murdering all these supposed “meanings” imposed by a society, a country, a time, a social class, while remaining devoid of meaning, which does not mean being meaningless, it does not run through this epistemology affluent; but it means harnessing a void and working towards its meaning through life. And so, weaving the lost links, in latency of this deep sense, without authorship, letting life be created through us, really being an agent of life. In other words, having a life density would then be for those who are really empty, for those who have room to maneuver. Ironically, only those who are empty have this volume of life, so that they have room to maneuver their life in the world. A world that actually, dryly, with a light so strong that it is unbearable, is empty of that sense, so we are constantly giving to it. The world is raw. It is unbearably raw. But it is only possible to invent within this unbearable rawness. Dealing with the unbearable rawness until the rawness starts to change into something else – maybe that something else is an invention. That is why I say Rubens is a murderer. An assassin of an entire meaning of life that is constantly imposed on him, and, not to be flippant, that his own body constantly wants to impose on him, since somehow our body needs to protect itself from its owner. But the artist negotiates with greater forces so that the body can finally get back to living with itself. And only through this murder, and an arsenal of tools, does Rubens give birth to the new, from having nothing, to having something. That’s why RES has no limits, and that’s why he can do anything. For it is precisely by having nothing that one can have everything.
Rubens is the rigger who maneuvers through life in the world. He negotiates a space in the world for this life.
Vendo a obra do RES agora acabo de me dar conta da importância de ver arte e de como leva tempo para que as coisas se assimilem. Há uma impaciência da nossa parte em querer chegar a resultados rápidos, entender de imediato uma questão, sem ter a experiência prática do envolvimento com a própria questão. Tenho percebido, inclusive a partir da minha própria ansiedade, uma necessidade de controle e de “autonomia” do pensar e do fazer, sem levar em consideração que ambos “pensar” e “fazer” são entidades próprias, são mídias próprias, que vão criando robustez e destreza com a prática, com o exercício, com a experiência. Introduzo esse texto com essa questão, por ter recentemente vivido a experiência de ser pega pelo meu “pensamento pensando sozinho”, do pensamento agindo como mídia, ao passar um tempo observando alguns dos desenhos de RES, e de experimentar o deleite que é isso. De tanto me relacionar com sua obra, da experiência diária e obsessiva de investigar o que Rubens faz, uma hora, o pensamento naturalmente chega em conclusões por conta própria. Ao se permitir e se dispor a construir um envolvimento com algo que realmente se ama, aos poucos, aquilo começa a fazer parte integral de você; aos poucos, informações colhidas diariamente e armazenadas em um banco de dados mental se tornam subsídios para novas esferas de compreensões e conclusões impensáveis anteriormente.
Isso me faz pensar numa história. Um belo dia, o físico alemão Max Planck estava caminhando com seu neto, provavelmente pelas ruas de Berlin, e ao subir no ônibus, com um pé ainda na calçada e o outro no degrau, teve uma epifania acerca da teoria que mais tarde teria sido batizada com o nome de “Constante de Planck”, fundamental para a teoria quântica surgida dez anos depois. Essa história descreve com precisão o que estou querendo introduzir aqui. A epifania foi possível, não porque recebeu uma mensagem “do além” sobre um assunto que não tinha sequer relação, mas possivelmente seu corpo foi capaz de ler um dado naquele momento que, por ter um enorme banco de dados mental, como um processo químico, assimilou um acontecimento, essa assimilação reagiu com outras informações armazenadas, e concluiu-se nisso que chamei de ‘epifania’. Podemos dizer que esse “banco de dados”, que é construído diariamente com a experiência e o envolvimento com o que se interessa, é indispensável para o desenvolvimento de uma gramática, ele é indispensável para o trabalho cada vez mais sofisticado de nosso aparelho cognitivo.
Em ocasião de um portfólio de RES que estou trabalhando, passei alguns dias revendo muitos de seus trabalhos, e percebi relações formais e filosóficas entre alguns desenhos que nunca antes havia me dado conta.
Vou começar pelos desenhos pequenos. Temos papeis medindo aproximadamente 4 x 4 cm, neles vemos imagens formadas por tipos de diferentes manchas, dá para perceber que as imagens não foram necessariamente construídas deliberadamente, digo, não são imagens em que o artista construiu como paisagens, não construiu essas imagens querendo representar paisagens – a escala do papel é muito pequena para a intensidade do gesto que está em cada um deles. Conclui-se então que são imagens formadas de outra maneira, onde uma “paisagem” apresenta-se nos minúsculos papéis. Há aqui um dado muito importante, a diferença de uma imagem que é representada na superfície do papel, e uma imagem que é apresentada na superfície do papel. Impossível não pensar em Cézanne com esse dado, quando abre mão das regras acadêmicas da arte de representar uma paisagem, e obsessivamente, insiste que sua pintura teria que apresentar a paisagem, e dessa forma inventou a sua própria maneira de pintar, inventou uma forma para que o acontecimento, o fenômeno que tinha diante de seus olhos, pudesse se fazer manifesto na própria pintura.
No caso desses desenhos pequenos de RES, ele inicia seu processo com papéis geralmente de tamanho A4, com um arsenal de ferramentas restrito geralmente à um universo específico – tem sessões em que o “universo” escolhido é o pastel oleoso, grafite e lápis de cor, tem sessões em que o “universo” é a caneta bic geralmente da cor azul, algumas canetas com a tinta diluída em álcool, outras com sua ponta esferográfica, outras somente com o tubo de tinta retirado do invólucro de plástico, outras sessões o papel começa do tamanho 150 x 150, e ele inicia o processo desenhando coisas aleatórias ao seu redor, depois joga álcool e fogo no papel, até que o fogo faça seu trabalho queimando algumas partes, chamuscando outras, deixando faíscas pousarem em diversas direções; tem vezes que decide trabalhar com materiais que não tem relação nenhuma com o universo das “artes plásticas”, como cachaça, terra, sangue animal, café, restos de comida da geladeira, urina, cinzas de seu charuto… Uma vez que RES inicia uma sessão de desenho, qualquer coisa pode se tornar um dispositivo para o desenho. Gosto de chamar esse procedimento de RES de um esgotamento do gesto, onde aos poucos vai desfazendo-se das amarras convencionais que nos é imposta (de modo que o que vemos no papel é um grande caos, algo que a princípio poderíamos julgar como uma mixórdia), assim como vai esgotando as inúmeras possibilidades conhecidas do fazer linha, mancha, hachura, rabisco, observação, tensão, sutileza, violência, acaso, controle, descontrole – tudo isso sobre um papel extremamente resistente, constitutivo do desenho.
O que acho interessante sobre esses procedimentos, é que oposto ao que uma pessoa comum poderia desejar, que é alcançar sua suficiência, ter destreza do que faz, estar apto a fazer o que faz, RES quer alcançar um estado de esgotamento de sua suficiência, quer alcançar o espaço em que ele não mais tem recursos, quer encontrar o espaço sem saída, para que seja obrigado a construir uma nova saída. Lembro aqui do filme Nikita, de Luc Besson. Uma aprendiz de espiã é colocada à prova pelos seus chefes quando, em uma missão, ao ter as coordenadas do que deve fazer, Nikita se encontra em um beco sem saída, se encontra em um corredor de tijolo onde não tem mais para onde correr, e seu oponente está indo atrás dela. Nessa situação, Nikita tem duas opções: ou entrega sua vida, ou tem que inventar uma solução nova para se manter viva, tem que inventar uma linguagem nova dentro da situação para se salvar. Em termos de procedimento, é muito parecido com o que é feito por RES. Se coloca em uma situação em que todos seus recursos já foram utilizados, esgota sua força, esgota sua disposição, esgota suas referências, para que uma força excedente, tenha que ser inventada para atravessar tal situação. Me fascina o pacto que faz com o desenho, o grau de envolvimento e comprometimento criado com um pedaço de papel, a ponto de, ao assistir a sessão, esquecer que se trata de um pedaço de papel, mas o pedaço de papel se transforma em um órgão vital de sobrevivência para sua própria espécie. Junto ao pedaço de papel, coloca-se em situação de guerra, ficciona uma batalha mitológica, para arranjar algum modo de sair incólume.
Que quer dizer desenhar? Como se consegue desenhar? É a ação de abrir passagem através de um muro de ferro.
Vincent Van Gogh
Em seguida, temos o segundo ato da sessão. Geralmente, antes de começar, Rubens pede para seus assistentes limparem o ambiente – que está caótico –, de modo a transformá-lo em uma espécie de sala cirúrgica. A energia do espaço é outra. RES junta então todos os papéis sofridos pelo esgotamento do gesto, e diria que enfim começa mesmo a desenhar. O momento de desenhar propriamente, não é utilizado mais nenhum dos instrumentos de “aplicação” de materiais na superfície do papel, somente uma tesoura. Rubens junta todos os papéis em um grande bloco, determina um tamanho, algo como 10 x 10 cm, e aleatoriamente recorta todos juntos. Em seguida, olha um por um, meticulosamente, e inicia os procedimentos cirúrgicos, de recortar cada papel individualmente, em busca de fazer a paisagem escondida em cada um deles, aparecer, enfim se apresentar.
RES lê o que foi feito, analisa cada papel minúsculo em busca das paisagens ‘escondidas’. Descarta muitos, mas segue buscando nessas imagens manifestas, o que sobra ou vaza das suas ações, o momento em que o esgotamento da suficiência, dos recursos, encontra o espaço onde a insuficiência desenha a sua própria falta, o seu próprio imponderável. Por isso, apesar de serem desenhos que podemos ver, diria que são desenhos da própria falta, são desenhos da própria vulnerabilidade, são desenho inclusive, do universo da mulher, do vazio, do que não se vê, do que não se apreende, do que não se pondera, mas não deixa de estar lá. O imponderável se faz presente através desses desenhos.
Apesar de não ter percebido na época, noto hoje que há um procedimento filosófico muito parecido utilizado nos desenhos grandes, particularmente na série dos Barcos – apesar da escala e do resultado serem tão diferentes.
Essa semelhança não está necessariamente na forma de execução do desenho, mas no modo como RES constrói um dispositivo para que o desenho “impossível” possa surgir. O que quero dizer com “desenho impossível”? Vou partir da ideia de um desenho possível. Um desenho possível, penso ser o que aquele que faz tem todos os recursos, instrumentos, força, e conhecimento para fazê-lo. Um desenho possível é aquele que não apresenta necessariamente contradição ou dificuldade que não possa ser atravessada. Um desenho possível seria aquele que qualquer um com dois braços poderia fazer perfeitamente. Agora, o que seria o desenho de um sujeito com restrições de movimento, por exemplo? O que seria o desenho de uma pessoa com restrições nas mãos? O que seria o desenho de uma pessoa sem braços? O que seria o desenho daquele que não tem mais forças para parar em pé? Daquele que lhe foi sacado tudo? Daquele que apostou todas as suas fichas? Como continuará jogando, o sujeito que já apostou todas as suas fichas? O que terá que dar para o cassino como crédito para continuar jogando?
Diria que os desenhos grandes, ou o “desenho impossível”, apresenta essa questão – os desenhos grandes são o pagamento daquele que não tem mais fichas para jogar – mas está dentro do jogo –, então tem que dar um jeito de pagar em uma moeda que não existe em seu bolso.
Colocando essas ideias abstratas de modo mais prático. Para esses desenhos existirem, a primeira coisa elementar que RES entendeu foi que o papel teria que ser muito forte, teria que ser um tipo de papel que suportasse tamanha violência sem ser totalmente destruído, um papel que resistisse a um grande impacto. O papel utilizado nos desenhos é o Arches 300g, da fábrica francesa que existe desde 1492. Um elemento importante no caso dos desenhos maiores, é que RES não somente esgota o seu gesto e sua suficiência, como acontece no caso dos desenhos menores, mas aqui, RES também leva a resistência do papel até o seu limite. Joga água, álcool, fogo, pólvora, amassa inteiro, joga na lata de lixo, pede para seus assistentes pisarem em cima dele, arrasta pelo chão sujo do Atelier, urina no desenho, cospe, e por aí vai, buscando executar ações não só “não convencionais” como também ações “sujas”, ações “incorretas”, ações que escapam do léxico de ações possíveis para se fazer com um papel. (Pequena digressão: essas ações que RES executa nesse momento, aproxima ele de um “criminoso”, um “assassino”, no sentido de executar o que é proibido, executar o fora da lei, executar o seu ridículo, executar aquilo que escondemos diariamente na tentativa de sermos civilizados. Nessa linha de pensamento, vejo uma relação profunda com o artista Paul McCarthy, nas suas performances em que estressa o grotesco, ou mesmo com grupo de Ativistas de Viena dos anos 60, que inclui Otto Muehl, Günter Brus, Rudolf Schwarzkogler e Hermann Nitsch. Todos esses artistas têm em comum a vontade de levar algo até seu limite, seja as possibilidades do corpo, assim como as possibilidades do papel, ou mesmo levar até o limite o próprio ridículo, escatológico, estado animal). São procedimentos parecidos filosoficamente com os procedimentos executados nos desenhos menores, que se traduzem agora a uma grande escala.
A diferença, porém, de RES com os artistas citados é que tais ações de RES não são o fim de seu desenho, mas o meio para que o desenho possa então existir. O desenho não é uma ode ao descontrole, o desenho não é uma ode ao caos e ao proibido (e não quero aqui limitar o trabalho desses artista à essa ideia necessariamente), mas o desenho de RES parte dessas ações para que algo seja exaurido, para que algo seja ultrapassado, atravessado, para não sobrar desejo no desenho, para que o desenho não seja algo que exista para suprir um desejo do artista, mas para que o desenho seja a própria falta, o desenho seja o atravessamento de uma suficiência, o atravessamento do estado de ter fichas infinitas para jogar. Colocando de forma poética e oportuna, o desenho não é o estado de tempestade em alto mar, mas o estado que segue a tempestade, o estado após todos os marinheiros se exaltarem, após entrarem em estado de concentração máxima para não deixar com que o barco afunde, o estado após o tumulto, o desenho é o vazio que surge ao ter atravessado o impossível.
Particularmente, gostava muito de assistir às sessões, gostava de ficar percebendo suas ações (mas não tinha distanciamento ainda para tentar acompanhar o que ele estava mesmo fazendo). Via o que acontecia, mas não sabia o que estava acontecendo, não acompanhava as relações filosóficas implicadas nos procedimentos. Pelo menos, não essa que aqui gostaria de observar.
A cada intervalo do embate físico com o papel, Rubens sentava-se e em silêncio, observava a imagem. Podia passar horas nesse estado. Esse momento era muito decisivo, nunca soube o que mesmo ele via, o que estava lendo, pensando, analisando, refletindo. Era um momento muito íntimo e silencioso. Levantava-se então, e voltava às ações. Claramente suas ações vinham de respostas ao que o papel tinha lhe comunicado, havia ali uma sismografia dos sentidos do próprio desenho ainda incrustado na trama do papel.
Até que, depois de esgotar algo (de si mesmo e do papel, como já tentei expor), outra coisa começava a acontecer, RES começava os procedimentos científicos, altamente calculados: Construiu o desastre para agora reconfigurá-lo e resgatar uma ordem profunda assimilada em torno do caos. Com a imagem em mente do “barquinho”, ou das paisagens, por exemplo, ele começa a sismografar as possibilidades de localizar o barquinho ou paisagens, ou um respiro diante da situação bélica que instaurou – eis o que acontece com tudo que ele faz.
RES cria dispositivos para que o lugar conhecido desapareça, cria um cenário incômodo para justamente ter que inventar novas saídas; se coloca em um lugar desconhecido, para sismografar esses espaços ainda não conhecidos por ele (esses espaços são o desenho, e consequentemente ele mesmo). O interesse de RES pelo caos ou pelo “problema”, pelo “desconhecido”, está na possibilidade apresentada de desenvolver novas ferramentas para ordem, ou, como insiste, para uma organização. Assim que RES tem uma situação insolúvel erguida, ele começa a escavar as novas soluções que cada condição lhe apresenta. Assim como a guerra é um momento oportuno para novas invenções e descobertas científicas, médicas, industriais, etc, RES cria uma situação de guerra para ter que ativar espaços ainda não acionados dentro dele mesmo.
As operações são muito parecidas, já que o objetivo me parece o mesmo: encontrar, a cada dia, soluções novas, ferramentas novas, modos de existir novos, formas novas. É uma obsessão pela forma, uma obsessão pelas infinitas, realmente infinitas possibilidades de fazer, de ser, de existir, de pensar, de executar, e para isso a premissa parte de um lugar zero dogmático, zero moral, zero maniqueísta. Penso ser essa uma grande narrativa de seus desenhos, sejam eles grandes ou pequenos.
I realize as I watch RES work, considering his speed for practical thinking, the velocity with which he creates solutions, with which he seeks new war tools, new battle instruments, these weapons that save him in battle, his solutions come not as “visual solutions”, but rather as solutions that rescue him from defeat, defeated by himself, by his insufficiency, he wants to be able to be defeated by sufficiency, by the failure of building a work that is greater than himself, this failure does not transform his ability to produce, but in producing something that is greater than himself. Or, going back to considering the way he acts, I realize that he himself, with so many assistants, is an assistant, Rubens takes orders and follows them, like an antenna that picks up signals, he has equipped himself with the ability to place these signals in the world, he created all the necessary devices for these signals to exist outside of latency. These signals, or rather, his drawings, already existed before hand, they already existed before they were made, however, RES generated a favorable space for the drawing to exist in another plain of existence, to exist while it presents itself to us – it is really a generous act, that of making something that already exists (even if it escapes our vision), for this material world, as a commission. The drawing is a commission that passes through RES to exist, RES is the vehicle for this commission’s existence, he is the postman, who seeks the commission in one place and takes it to another, RES seeks the drawing where some might call “beyond”, and brings it to nature, and thus, breaking the distinctions between these worlds, the drawing becomes the precise gap, the possibility of reuniting two worlds, which are actually split in “two” by the spiritual crisis of our time. Perhaps this is a term to think about, the artist as the postman, who collects a letter in a database of unique codes and laws, transcribing them to other laws, to another dimension, another galaxy, even if these two galaxies are the same, the postman does the dirty work of transfiguring one thing into another, of transforming an amorphous code into matter, yet still as amorphous matter, that s, the thing does not stop being what it was in the first place, but is now incarnated in the drawing before us.
And so, this commission comes to exist within RES’ visual, cultural, temporal, and social universe, just as it was with Cézanne, he is the vehicle for his painting’s existence, and that is where both RES and Cézanne meet, the first layer in the drawing can represent or situate the artist in chronological history, but after this layer, the drawings share the same anachronistic historical site. The first layer of the drawing is the artifice that sustains the drawing, which is actually what lies between the screen of Cézanne’s painting and RES’ drawing – among these, both are found. And as Chvaicer very precisely said, “RES did something that Duchamp wanted to do: eliminate the artist’s hand, by the artist’s own hand” – Rubens’ hand is just an instrument, as I said before, a medium, an actionable device for something that is not his. The question is then to investigate what exactly is the work done, in order to be able to dispossess oneself in such a way, and only then, in that dispossession, is able to return to oneself. In his passage about the collector, Benjamin says that a collector can have many objects, but that does not mean he owns them. By giving himself up, RES is ultimately possessed by himself – and he knows that he does not belong to himself.
And on a very personal level, his drawing, the drawing commissioned through RES, the work commissioned through RES, is a device that fertilizes the dispossessed embryos within me.
Joana crosses the street
Joana arrives at home
She takes off her high heels
She moves her toes, twisting them up and down, she runs her hand through the quilt, she lies down. Joana stretches herself out on the bed. She wriggles. She gets up and goes to the window, stares at the park, Joana lives in front of a small park, just beyond a train line, in a low-rise building, 5 floors at most. Joana lives alone. Joana drinks a glass of water. The floor is wooden. This is not true, Joana wears tight jeans, leopard high heels, a black suit, she walks in a hurry, tight ankle pants, brown skin, as if her grandparents were indigenous, Joana is a character of herself, straight out of a cheap fashion magazine with a touch of unsuccessful colonization, there’s obviously a failure and frustration in Joana’s fast pace, an emergency that didn’t take off, there is something wrong with Joana, what is it? Resentment, what does Joana’s body reveal? The tight pants, the tight jeans? The cheap high heels, not very comfortable, the usual suit, standard, the straight and smooth haircut, indigenous hair, her skin is brown, dark, the face faces a little inward, not adjusting to the clothes. As if she was punched in the face. Disfigurement. Joana crossed the street in front of me, I don’t know where she was going or what she was going to do, it was too early on a Thursday morning, Joana obviously remembers the institution, the office, the corporation, the end-of-the-year get-together in a corner restaurant with tables on the street and lots of beer and loud music. Because Joana could not be different, because her clothes were not, her looks were not, her manners were not, Joana was in a straitjacket, in a frustrated and resentful woman’s uniform. Joana cannot be only that. Who, my god, is the real Joana? Where can you find what I could not see, what both Joana and I let slip away, my gaze and her body, what exudes the stench of this analysis? Why can I not see Joana neither from behind, nor without her tight pants, and when I return a long time after crossing the street, and see the still very young little girl crossing the street without codes and certainties, without the institution of getting things right weighing on her back, yoke, reed, polymath, false, innate, vernacular, yes I want the vernacular Joana, the innate Joana, the wandering Joana, the Joana crushed inside all this dirt, that became Joana by leaps and bounds, Joana without heels, the Joana unleashed, Joana in pajamas on the street, Joana without hair treatment, Joana without a flat iron straightener. Joana emerging from the ashes, like a phoenix, my lord how do I find this woman within the crushing structure that Joana has put herself in? How can I free her from myself? How do I escape from what I want to say about Joana and myself, how can I speak about Joana and Joana speak about me, the dead and forgotten language of the Eskimos of my soul? How do I resurrect the Joycean gaze in Joana and myself? How does one penetrate the never-open currents of our speeches, why not speak about our silence, why not wait for Joana’s own speech to speak, to speak to me, scream to me what wants to be said in this shitty text. In this communication, subject to not communicating anything, a hostage to everything, grammar, to my fascism, my traumas, my limitations, my prejudices. Yes, I am a damned prejudiced man. Joana only crosses the street the way she wants to, she has the inalienable right to have whatever shoe she wants, I just want a text from Joana, while Joana just wants to solve something, some business, why would my text be a cleaner thing than the business of Joana? Between me and Joana there is more connection than I wished for, than I would like to want! Joana and I crossed the same disgraceful street, that of the spectacle. She on Ipiranga street, I on the written street. My tight pants are saying in the text, my tight pants are getting rid of the grammar imposed on me, by me, to say what I want from me and Joana, I want to escape Joana as I want to escape what I am forced to say by the grammar and regency of this language. I want to be in a language that has never been spoken. With no rhetoric. Joana crosses me when crossing the street, I’m at the end of Joana’s walk, I’m the end of her journey even though we don’t both know about this phenomenon, if I don’t cross Joana through this text safe and sound, I failed as a Messiah, obviously an irony, the Messiah is another trap, I cannot want to save Joana, nor save myself, let’s leave this salvation business to the church, the Catholic institution, Joana and I are in the middle of the sidewalk without Salvation. They both look at each other, it makes me want to run, but our feet wouldn’t respond to this. Joana! Naked Joana is still Joana. Joana without a name would still be Joana, Joana without a job would still be Joana, Joana is impregnated with Joana, as I am intoxicated by myself to really be able to write what Joana is, Joana would come to me like a flood of not me, I cannot identify what is not me, my eyes are blind to what is not me: gauntlet, cyclops, one-eyed man, one-eyed eye, one-way eye, cut off back, of return. Without returning I cannot see Joana, I need to blind myself to see Joana. What I now see is myself expanding, I need to block myself, put a wedge in me, fall and hurt my mouth, spurt blood, break my teeth, this way I will be humble in establishing myself with Joana, Joana wants a legitimate trade with me. One pass. It is an tacitus agreement. Yes TACITUS. That is it, without the tacit I’m without Joana. Without Joana, I’m fucked. Joana who passes by me without my seeing her. Joana who passes by me without a way of being, improbable Joana, adjacency, without judgment, without law. I am done. Jumping from one subject to another, I can’t stand being in what Joana is, in Joan’s rotten substance, Joana’s garbage, Joana’s rottenness, even so Joana, joking substance, amalgamates, Joana begins to testify by herself, so invade this damned text and say what you want Joana: give your own testimony, intravenously, I’ll lend you my rude, rudimentary speech to talk about you and me, which I did not have the courage to pronounce, scum that we are. I lost contact with Joana, Joana come back, speak, babble, translate, even if it is in an incomprehensible dialect, even if it is out of language, of any known sign, of comprehension itself that is incomprehensible, out of the straitjacket of understanding. Consciousness. Dialect, tongue streaks, stuttering, nomad, slender —speak, insist, pierce, bend, cross the street, Joana, I wait for you on the other side of the street to receive you on my conscienceless lap, invalid password for the text, he faked himself, simulacrum, it’s horrible when the crossing is fake and only serves to impress, it’s for the other, it’s a doing and not an act. The text action falls apart. Joana crosses the street, but there is no longer another side.
Concerning what RES is doing with language, with the idea of text. As little by little he creates a trap, he deceives grammar, he deceives the gatekeepers of the organizational code of speech, who traps him inside a cage of himself , deceiving them little by little, until at one point they are all excited thinking that RES is telling them about a certain Joana, they’re all already fantasizing about this character in their minds, until without realizing it, RES found a way to be saying out of the cell, while they toss coins. A bit like Schrödinger’s cat: RES is in and out of the cell at the same time – inside the cell there is the story of Joana, and outside the cell there is also Joana, but there is J – O – A – N – A, or A – J – N – O – A, or O – O – O – O – O, J – J – J – J – J…
with all the letters already shuffled, new letters, new codes being used, codes hidden all over Joana’s skin, Joana lends her Joana skin and in tight pants and leopard sandals, and probably some pink-painted nails already peeling, Joana lends her skin to carry this new grammatical code – Joana is this code’s mule, so the guards are distracted by her ass, emphasized by her tight pants, she carries this infiltrated code in her body. It’s like his bone sculpture, in a way it is also a mule: after all, it’s also just a sculpted piece of bone. But it carries within its orifices, in the bones’ pores, another substance, it already carries another type of marrow. Rubens’ use of the figure is interesting, and since he is not necessarily a man of abstraction: the figures are his mules, the figure guarantees a body to deceive the doormen, so that from this body, this flesh, you transgress the grids of saying, without the doormen noticing. His figures fulfill Joanna’s roles in the text.
I’m starting to understand a little more what the maneuvers were for the great geniuses. They were not just some free inventions, but a maneuver developed as a tool to throw off the guardians of speech, and to finally be able to invent the language, for some there is nothing being invented, just a somewhat chronologically confused text, what is this text about? Did I not catch your message? I know a Joanna… Is he critiquing today’s fashion?…
But the flesh of the text is a bloody war between two factions in the Tower of Babel, people being killed randomly with stray bullets, men with their faces wrapped in T-shirts, covering their faces, old tires burning with people trapped inside, mothers walking down a hill and entering alleys with small children seeking shelter, 9-year-old boys with semiautomatics hanging around their necks – the flesh of the text is a city ablaze, in an entire country where speech is being burned, all its ancestors are contorted on the ground with gasoline being poured on them while Joana waits to light her zippo…
Joana is a bit like Judas – she sacrifices all her pride, her belief in speech, the supposed image she would like to build of herself for others, to betray the text, to deceive the gatekeepers into thinking the text is about her, to make the guardians think it’s just another little text about another little tramp they’re going to read while scratching their balls, but without betraying it, without Joana dressing up as a tramp to cross the street, the text cannot exist. The Text needs someone to betray him so he can live, so he can finally breathe a little bit out of prison.
(a brief introduction aiming at starting the organization of the places of these things)
I was thinking about the little understanding I got from what Beatrix said, about RES’ drawing having the same strength as Bruno Dumont’s film, “Ma Loute.” But I disagree, I particularly think that this drawing has nothing to do with Bruno Dumont’s film, of course, I may be being frivolous, and even arrogant, but I think that Bruno Dumont dreams with what is revealed in this drawing, dreams that this is possible, but I don’t know if he really believes that he himself can do it. This incisive observation in this text is important because I think it is urgent that we know how to separate things, not in a Manichean manner, but in a way that we can understand how one thing can be the bedrock of another and how one thing really dialogues with the other. It is vital that we know how to discern one thing from another, so that we can not only see things in a better way, but also understand the place where each thing belongs to, and how the fact that each thing has and knows its own space is essential for something to happen, so that one is not naive of his own ambition and situation.
I think his film is brilliant, “Ma Loute” is brilliant, but mainly from a critical point of view. I think he makes a stunning critique of art, of our time, of the miserable epistemology that involves us like a gooey and perverse sludge. I find Bruno Dumont’s film a prediction for times to come, a bet for the new human being, but these questions are only the beginning of questions in RES’ drawings. There is no way not to immediately relate this drawing, in particular, with Tarkovsky’s cinema – and that’s where “knowing how to see” gains a dimension that I believe is seriously urgent. It really is a charm, a talisman, an object that RES brings into the world of presence, into this world that we can see. Rubens brought an impossible object to a state of possibility, even if it never ceases to be impossible, since it will always be bigger than us. But to be bigger than us is the great beauty of the object, and to notice spasms of the understanding of something bigger than me makes me realize that I myself am greater than me, that in somewhere secret from us, this drawing dialogues, this drawing knows and we also know, even if we don’t know this known place; it shrieks inside of us and it awakes a new comprehension of what we are, or, of what is in us, of what indeed exists, which is me, beyond me: the most precious particle of life – though supposedly insignificant these days – and that, without it, we do not exist. It is humbling enough to not need to be seen or to be “the big star” of the show all the time, but it is there, in its tiny hidden room, in the attic of our dwelling, since it doesn’t need any bigger room, it doesn’t need to have any significant space, because all of space already belongs to her.
In this sense, I comprehend the approximation of the drawing with Bruno Dumont’s film, but I dare to say that I find it hard for a French director to make a film these days like this drawing – the times are different, the organization is different, the configurations are readjusting themselves, they are in movement, the configurations are in a moment of suspension, their links are suspended, loose, and in latency to be readjusted. Bruno Dumont is doing his country a great favor, France, the “great father of film”, and this favor concerns destroying an entire worldview; but Rubens does us a favor with his work that I don’t believe is doing a favor to his country anymore, I don’t know if his work has a country, but I think this drawing is not a favor either, but really, an obligation. Rubens has no way out, if the drawing was only a drawing or if it was in service of his country, he could have finished two hours earlier, but the time and the path that it, the drawing, ordered RES to take him, makes me give up everything I could come to think about, it no longer concerns this time we live in, much less a country, I think it really has to do with the sea, the great ocean that intervals the landmasses, intervals the supposed “countries”, the supposed “names”. The drawing has no name, it is the thing that names, even in a “non-language”, a language that costs us our identified existence.
And to make my view on Bruno Dumont clear again: I don’t think that the fact that his film doesn’t measure up to Ruben’s drawing demeans it, on the contrary, I believe it is vital that this film exists, but his film is still a film of this time, a prediction for future times, a prediction for a less sick future world; but RES’ drawing doesn’t predict a future for this world, it dialogues with a mythical time, it proclaims the impossible of times. Dumont’s “Ma Loute” is really a dream of this drawing, it is the desire that this other place that configures itself to give birth to this drawing is possible; and perhaps the existence of his cinema is indispensable to generate strength in Rubens, for Friday’s battle, so that Rubens doesn’t stop believing in what’s his – since other men are taking care of the Earth, Rubens must partake with the stars.
PART II
What am I saying when I say that Rubens expects nothing from his drawing:
The drawing waits for Rubens.
That is very different from saying that the drawing expects from Rubens. When I say that the drawing waits for Rubens, I mean, there is something that can always go further, waiting for us to find it, the drawing, it already exists, it already exists in some lost place of a world that we cannot see, just as Rubens that comes to his becoming after drawing, it is also found on a hold, on hold, in some place. There is a wait for us somewhere, something that waits for us, who knows, maybe life itself is waiting for us; our own life is waiting to be rescued. The drawing waits for RES, the drawing waits for this encounter, where RES lets go of being RES, and the drawing lets go of being a drawing, so that both can return to be what time requires of them to be. Rubens, I realize, listens to that calling, he hears the soft voice of the calling, like a Siren song, that intoxicated the sailors in the Odyssey; Rubens embarks on a journey without tying himself to the pillars with tensioned ropes, Rubens loosens the ropes so that this way, real tension can be established: the tension of having the ropes loose, the tension of not using any devices of tension, of not using devices anymore to exist, to do, to complain; the tension of a loose creature that suspends all rules to seek for its own salvation, to seek for itself in a journey that may have no return – the drawing is the amulet of this journey, it is what allows his feet to remain fixed to the ground, the drawing leads it, even though the drawing does not yet exist, the non-existent thing of the drawing is what makes the drawing itself, it is what whispers deafeningly in RES’ ear so that he doesn’t stop, so that he keeps following the path in the dark part of the forest, where his partners have already left him alone, where he is alone, and the non-existent thing is guiding him. RES listens to what Homer called “Siren song” and dives towards them, to the point in which he sees that the Sirens are not really Sirens, Rubens finds out the real identity of the Sirens, and negotiates with them the value of undressing them, undressing the fantasy through his drawing, and slowly, takes from himself another layer of skin of his own fantasy in the world. In each conquest, or in each destruction, the more intense is the smell of blood from his flesh being exposed, in each conquer, less recognizable RES becomes, and at the same time, the closer he gets to his impossible identity.
The drawing waits so that RES inaugurates it into the world, a three-hour session, a battle; a crack opens in time for the drawing to develop, evolves into the form of how it intends to exist. And if RES waits for something in particular to happen, the drawing is not going to exist. RES, on the contrary, is the one that must go after it, he must deflower the virgin forests that are supposedly invisible for us and rescue the drawing into this world. It is a very subtle, and yet a very violent battle between many worlds, between the infinite layers of invisible spaces.
PART III
The great misfortune of the drawing (and particularly a very difficult part to understand in this miserable time that we live in) is that it uses RES, and RES lets himself be used by it, RES no longer exists, Rubens Espírito Santo no longer exists for himself, this identity ceases to exist, it is handed over to the becoming that he came to fulfill on this Earth, or that – trying to be less abstract – he surrenders himself to being just a creature, an integral part of this tragedy: he ceases to be insignificant when he returns to being only a tiny part of reality: what other signifier besides this one? The way RES saves himself from his insignificance is by surrendering to it, so that the insignificant being gains such a form, such a strength, such a dimension of lucidity of disidentification, that it becomes again only a breath of life to articulate itself through him. Or even “through him” in this context does not make sense anymore, to think this way is to create a tear. He himself is this breath of life, we are a breath of life of a thing that came into existence, broken through the latency of this existence of ourselves to exist, so why on earth is there the tear? Maybe the tear is what makes the whole thing charming, is what generates grace, is what breathes beauty into life, if we knew about life all the time there would be no life to marvel at, life would be permanent boredom or permanent enjoyment, and so it would cease to be either one of those things. Possibly, the wonder of life is actually that it will always be greater than we are so that we are seduced by it. The misfortune is that we really have no choice, the misfortune is in realizing that consciousness is a concentration camp in which we are prisoners, prisoners of a life that waits for us. This being so, RES’ drawing, dedicated to Plato’s Phaedrus, is the misfortune of life, being misfortune as the most wonderful fortune that we have, of being antecedent to us. The drawing is a great lord that prevents RES from desiring, there is no more desire in drawing, there are orders, the conduction path exists so that RES follows it through its orders. It is no longer about plastics, no longer about art, about drawing, about anything that we can name, since the drawing is what nominates us, and desperately, we fear to hear the enunciation, the proclamation of ourselves that this creature declares. And even if we wanted to, it is enough to be in front of this drawing so that this name being uttered starts to echo in our ear. To be in front of the drawing, even for a second, is already enough time for it to infiltrate itself in the tiniest pore of our skin and make our body its dwelling-place; (this is why collecting is something so sophisticated, since the great work of art constantly collects us, it assaults us, and to possess the work, is to negotiate with this assault), this, I believe, is the power of a work of art, to awaken and accumulate the debt of life that awaiting us.
PART IV
There is a moment where matter seems to clearly yield to RES, to yield to his will, but I wonder, what is this will? Exactly what is that moment, what happens in this moment? What does it mean for matter to yield? I believe it has to do with a pact, a great negotiation, where RES has to prove to matter who is implicating it, and to prove this, he cannot have any desire, he cannot expect anything from the matter, it cannot feel any reminisces of Rubens’ desire, what RES has to do, is to entirely dispossess himself of its desire, to dispute itself with all his erudition, and come to negotiate with matter as matter itself. Matter must feel that Rubens is an equal, must know that his implication is impersonal, that Rubens is only the messenger of an implication, he is only a vehicle of such implication. At this moment, matter yields, and RES can articulate himself in it, and can then really bind himself in it, where, only then, matter and Rubens become one again, only one body, at this moment dialogue is established, but in order for dialogue to exist, there must be an exhaustive construction of trust between the two, where it is clear that one does not desire anything from the other, the two must come to exist together, as only one.
PART V
In the aftermath of the life-and-death battle – talk about the fight for RES’ life in the drawing, what is at stake is his sanity.
But what is that about? What is this sanity, how not to say the opposite? Why does a man who spends three hours drawing say he is fighting for his sanity? I would like to focus on this word, sanity. In the drawing Rubens struggles for sanity, the sanity of coming out of his own alienation, or, we could also think of sanity as a state of being at the service of something, of letting himself act like the waves of the sea that are moved by the Moon, or even the Earth in relation to the Moon, the rotation of the Moon around the Earth is done on account of an intelligence of the Earth’s mind, the Earth itself has a mind, the Earth itself thinks, and this immediately destroys any ordinary idea that we ourselves think, any idea of what “thinking” is, and something seems to become clearer in relation to the moment when one perceives oneself being thought. I believe that fighting for his sanity would actually be fighting to stop thinking, and being thought, being thought by the planet’s mind, letting himself be an instrument, an organ of a body much larger than himself. I believe this refers to a sanity that RES seeks in drawing. Where the opposite of sanity here would not be madness, here the opposite of sanity would be autonomy. RES lets the Earth’s mind drive his actions, and so, only then, can he return to sanity.
It seems like a great contradiction, but from somewhere unknown deep inside me, I know it isn’t, I know that this sanity is about a deep abandonment, finally an abandonment of oneself, it is a fierce fight against the matter of oneself, which wants to resist, so erudite it wants to be in control, it wants to be bigger, it wants to feel significant, it is an excellent battle towards its own insignificance: here is the victory of RES’ battle, here is the sanity Rubens seeks in this saga: insignificance. And when matter yields to the will of the artist, what we are saying is that the artist gives in to the will of time, he gives in to the will of what something wants of him as a man.
“…and so, what could one dream of being taught by someone who did not have the keys to their own knowledge, and would not arrogate it. He would give way to space, leaving the keys to someone else to unlock the word”
The paper in question is not a white surface, the paper that Rubens hates to lose, or cannot lose, is a paper (role) assigned to him by life itself, which he has already negotiated in advance, it is a paper he owes, that is owed, and it has to be repaid. Losing to this paper would be frivolous or lazy, or unfaithful to his own word – Rubens digs his own grave daily, he creates problems specifically to be bound by them, he makes affirmations so that he may prove them, a word is not a word for Rubens (like it commonly is), the word has turned into or returned to be his own flesh, his life, the word uttered by RES is not spoken by RES, it is the word that is manifested through RES, it is the life that RES leads that found a word as way of existing in a display, as a thing, and so the word ceases to be a word and returns to its origin of being pulsation, volition, a spirit. RES fictionalizes life in such a way that, at a certain point, his life has already been confused with said fiction, there is no longer any way to discern fiction from reality, Rubens is indebted to his invented fiction: from so much fictionalization, his fiction has become reality itself, becoming its own condition for existence, fiction has become him, the fiction has moved his bone structure, altered the strand of his DNA, and now there is no turning back.
Many comments permeated RES’ lack of fatigue in relation to others in the drawing session. I cannot see it that way, I do not think RES was necessarily less tired than anyone else at that drawing session, in fact I think it is most likely RES was the most tired of all, but he invents this fictional space within himself, he subverts the common usage that we consider fatigue, and transforms it into a drawings starting engine, assuming his fatigue and using it to draw – just like Artaud2, who delved deep into the concept of “having nothing to say”3 as a starting point for his work, Rubens dug into his tired body on a Friday afternoon to be able to use the acidity of tiredness as fuel to keep on moving, like a raw material, as a starting point. He enters another realm of his own tiredness, into a secret compartment within, flirting with exhaustion’s intimacy, perhaps to dwell into the space of its rules so he may no longer be guided by them, dialoguing with the rules, and perhaps to take the rigor of tiredness, the authority of tiredness, to be the authoritative gesture in drawing, the rigor of its implication to that resistant surface to the point where the drawing can manifest the rules of exhaustion, to the point where this extreme imprisonment can become a stumbling block for attaining freedom from oneself.
It’s like everything else in his life: he perverts the common laws of things, and after perverting them so much, over time, other latent possibilities start to emerge. From so much insistence on tiredness, from putting up with not immediately doing what his body is conditioned to do with this exhausted information for so long, tiredness opens up and reveals itself as a potent chemical agent for many other things besides sleep, or rest. Our body is a precious organism, it has infinite types of intelligence that we rarely access, and that is what Rubens wants to invoke, letting go of the conditioned responses we give to our body, thus letting the body operate on a tilt, and see what response the body will give to this provocation. Like a board, where the pieces are always organized in one way, Rubens starts by subverting this organization, to see how the game can proceed from another point of view. He subverts a type of display of his body, subverts a type of display of his time, invoking other possibilities of latent responses, to bring a forgotten richness back to life.
And so, having invented this subversive fictional space to display responses for so long, he now owes a debt to his invention, he is indebted to his being, to his other, to his power, there is no turning back, he has aroused some of his forbidden latencies and now pays a high price for them. It is always more pleasant to think that we cannot do something, the point is that throughout RES’ life he said he could in public, thus creating a debt with that power. Power is an avid collector.
Tiredly, a slave draws a small van on a piece of paper, humbly, after a long week, so that the van can finally lead him down the path he ought to go on this Friday. He circumscribes a space for a happening to arise. This is where Rubens wants to go. We have an idea of arrival that concerns an end, a destination, a terminal point, while for Rubens the idea of finally arriving is a beginning, the arrival is when the body, tired from such provocation, turns to that other thing that will forever be unknown to those who go home simply to rest; the arrival is when Rubens feels a new body appropriating his own, and shedding his old skin, his drawing only starts at this stage, and to reach that stage, you need a reservoir of oxygen, a breath built by years of experience, for generational decades.
From so much fictionalization, from creating so many artifices, techniques, instruments, mechanisms to maintain this life in a different way, at some point the reason behind the fiction, the fictional volition fictions himself, invoking itself within RES, at some point Rubens stops to be the subject of the fictionalizing action, becoming the object that suffers the action of the very fiction he aroused, within himself. Like a hibernating animal that Rubens woke, that now demands something from RES.
He becomes fiction, he becomes what makes him want to fictionalize, he becomes what he wants within the invention. From insisting on an invented world so much, at a given moment Rubens is received before us by another world, not the one he was inventing, but the very world in which resides the desire for invention.
In the abyss, you either sail or sink. In this place where RES finds himself, at his own risk, losing to paper would be the equivalent to his death, since paper is the only body he can count on to exist today. Every Friday session, he leaves his body for a few moments and trusts the paper, in this journey through the paper, his becoming body is revealed. For a few hours Rubens abandons himself, he lunges into the abyss to be able to rescue himself in a drawing that does not yet exist, and in that leap, into the depths of the abyss, he rescues the drawing, this is also his new body keeping himself alive. However, the one who jumps has to be equipped to feel the moment that the spark turns into an internal flame, which yearns for him, summons him, finally electing who will be this heat’s vehicle.
1st part
Where is a word born? Why is there such a great fear in writing, in plunging into the formless plots of thought, of anguish, and facing my own obvious limitations of existing outside my own head? Writing about the Cabin is a way of facing the inhospitable habitats within and saying something I cannot say, and then, that saying suffocates me, in this saga I find what I fear most of finding: my own limitations – in this saga I find that which oppresses me so, my frailty, and so, in this way, in this meeting, I begin to see the cabin a little more clearly, a word that supports itself out of its suffocation, a bloody word in raw flesh, Rubens’ fragility manifest, a Jew facing a Nazi and affirming himself a Jew. A word that needs to exist, which uses Rubens as its transmitter, its agent, acts through RES, or even, RES gives himself to its existence, and giving himself to that something has to do with entanglement, to become tangled up in his own mud, to throw himself into the abyss of insufficiency. Giving up oneself to this abyss of insufficiency is the starting point for something, initiating a reason to exist – solutions only begin to appear when the problem becomes unsustainable, and surrendering to that unsustainability is a gamble, it does not stop being a form of suicide, where man stops being the great protagonist of his own life, and understands that he is a mere slave of the life that passes through him.
If there is no dirt, if there is no discomfort, if there is no deep agony, the word remains in its superficiality, serving nothing, an empty word, an empty image, living forever on the surface of oneself and with the mistaken idea of that one can be an inventor. Perhaps there is no such thing, an inventor is one who, after constantly exposing himself to the insurmountable, swimming towards his own misery, transforms himself into a receptacle and a device for the invention, the inventor is then only a medium for the invention to manifest itself through him, and this invention becomes the available oxygen to breathe underwater, that is, “invention” is an empty word, what happens is that something is born, going from a solution to a vital requirement. Things need a real reason to be invented, to find themselves in an inventive plot, a word needs real resources to find its reason to break free from latency. If there is no requirement for something to be built, there is no possibility of invention at all. The Cabin is a combination of submitting oneself to one’s own most tragic, exposing oneself to one’s dead end, colluding with the gray area within and at the same time making it an activity, a battle, a saga, a pact with the spark of life that exists inside us.
With RES’ work it is clear to me that production becomes his surrendering to life, as an entity of its own, Rubens is a great worker who works in the name of being such a device, so that his word can find the channel of existence through it, and out of himself. There is no way to do anything without submitting to one’s limitations, to one’s own realm of impossibility; with each limitation, every punch thrown against an iron door, marks are made, and as with time, cracks appear, and one day, the wall breaks down – that is how I see RES, and I wonder: how can a man withstand his own wall broken down without breaking down with it? How can one be a living body entirely broken down? What I ask myself, very intimately, is: how can Rubens bear witness and remain alive, how can a work contain such a contradiction by being suicidal, while at the same time being the most genuine expression of life possible?
Rubens is a broken body that remains intact, standing, the Cabin is the space he created so he could negotiate with the Devil, to keep the Devil very close to him, RES builds a bed, a bunk bed, so the Devil can lie down under him and feel comfortable, RES builds an abode for the Devil, a trap to keep him around, and pays a high price for it… He pays the price of no more contradiction, where contradiction is a word for those who do not see, for those who cry for insufficiency – today Rubens cries for sufficiency, for having his eyes opened too far, for him there is no contradiction, there is no chaos, the supposed chaos is balance, it’s the Devil’s abode, who knows, maybe that is why so few endorse it – to maintain the contradiction, it is necessary to create a world that sustains it, a necessary a configuration is required, a bone structure strong enough to embody something that is just movement.
2nd part
A word is not invented, a word is a requirement, a demand, a great amorphous animal that hibernates in man, that grunts to acquire form, that grunts because grunting is for now it’s only form of existence through man. RES did not invent his word, but rather it was the word that invented him, from provoking this beast so much, resisting inertia so much, from so much resisting the oppression of what is manifest, like a warrior, he enters a sea, a storm on the high seas with his great war equipment and faces the aridity of his own loneliness, the awareness of his incompleteness, the awareness of his limitations. The Cabin, the drawings, large and small, texts, conversations, articulations are all the same, they are all a universe of laws built by RES, a single cabin, a single world within the world, but not a closed world, but rather a rhizomatic world, a world with tentacles, tentacles connected to the soil, which feed on the water that runs beneath the ground, the earth, the water that is oppressed by the Catalonian cold, a cold that has no longer anything to do with to do with temperature, but rather a cold from something that is left undone, something stagnant, something choked in the times we live in: the Cabana assaults the Catalan, in 10 days it assaults a tradition already in ruins that serves us no longer – the cultural tradition, scholar, genetics, it doesn’t matter, we can no longer live in the history of our ancestors, we cannot let the blood of our ancestors clot in our veins, RES destroys the truths, the false truths that configure a scenario of man’s atrophy today – withdraws the objects from a predatory man configuration, which immediately places him as lord, lord of anything, the Cabana de-hierarchizes the man and returns him to his insignificance, that is, his most intimate identity – and so something can begin to be built.
What are the problems presented by Western art’s narrative? There is a narrative, a way in which a story is told, a common thread that runs through time and forms what we call art history. Chronological or not, in any story there is a narrative. There are issues, specific problems within the visual arts that were articulated and intersected by those we call great artists. Problems solved by Giotto that consequently led to new issues, which were articulated by Masaccio, then Da Vinci, and then Rafael, Michelangelo, Caravaggio, El Greco, Rubens, Dürer, Caspar David, Turner, taking a leap further let us go to France with the avant-garde Duchamp, or to the United States with Pollock, and so on, a story is told in what we call chronological Western art history. We can also note that great “discoveries” come along with it, the breaking of artistic paradigms are strongly linked to significant historical moments. The Enlightenment, the French Revolution, the Industrial Revolution, the Second World War, the Cold War, perhaps we can call modern times as the quantum revolution with the birth of the quantum computer, to name what some call the fourth Industrial Revolution.
Based on Alfred Gell’s anthropological theory of art, the idea of the artist as a social agent emerges, in which the artist acts as a person capable of “generating heat”, of articulating heat as friction, as excitement, as a real feeling, as a feeling of being alive, of feeling life pulse inside you. From what I understood from Gell’s work, a social agent is one among the tribe capable of generating heat and organizing the tribe in the service of said heat, the social agent is someone capable of generating meaning in people’s lives, he is the one who establishes the ritual in the life of that tribe. Ritual as a felt feeling, as an organization, as the tribe’s body of laws, as that which keeps the tribe’s flame alive.
What does Covid-19 have to do with art?
What the crisis stemming from Covid-19 opens to the entire world: beyond our work, or the daily mechanisms we create to keep us busy, we do not have something actually real that keeps our flame lit daily – we lack this internal device (perhaps this is what is meant by a spiritual life: the construction of a device that keeps the flame burning, that keeps the heat circulating, that preserves the heat of that flame). With all our daily tasks, we mask this lacking, we invent a billion excuses so not to see the real problem. The real problem right now is: the flame of most people is too low, there is barely enough power to generate light, let alone heat. When I say that the crisis is stemming from the Covid-19 crisis, I am not being precise: the crisis is not coming from Covid-19, but Covid-19 makes visible the crisis itself. This was bound to happen at some point.
Returning to the narrative of Western art history; we have two emblematic works from the 20th century: Marcel Duchamp’s Fountain, 1917, and Andy Warhol’s Brillo Box, 1964.
I want to stick to a very specific aspect that is highlighted by both pieces: what is the object of the art in question? These objects lead me to conclude that no one actually buys an art piece, what is actually bought is a worldview materialized within an object, or within a maneuver, or even within a concept. In the case of Duchamp, I think that his work reaches levels that are still unthinkable to us. Something that he unshackled with his urinal, or rather with the urinal’s omission by the judges1, is that the art system, or the art market, consists of a very small group of people who hold, albeit for a short period of time, a transient power to legitimize what is and what is not art – that is, the art institution has, as jurisprudence, a criterion where some say whether something is, or is not, art. We already have a problem at this point. It is even more interesting to think that Duchamp’s urinal, which disappeared after being sent to the Armory salon, gained its importance after Alfred Stieglitz published its photograph in a magazine at the time. In other words, the great art work of the 20th century was never really an art object, but a maneuver, the art object became this maneuver. There was a brutal transposition that had never been done with such clarity. The art object presented itself as an abstract articulation with real implications for people’s lives and the history of art. With this gesture, Marcel Duchamp mobilized serious questions about art, and about his own era: what is an artistic object? What is really at issue when we discuss art? Is it the object? What do we purchase when we buy art? What do we really want, when buying an art object? In a similar fashion but in a symptomatic way (I insist on explaining the reason for this statement later), Warhol exhibited a wooden replica of an American dishwasher powder box in a gallery and sold it for millions, while the Brillo-branded soap box sold in supermarkets for $2.99. This raised a question among critics at the time: what is being paid for with those millions of dollars, if there is a similar object on the market being sold for $2.99? Something fascinating is discovered: nobody buys an object without context – the object only becomes artistic when it is inflated with context, insufflated by all the meaning surrounding it, circumscribing it. An object without this circumscription is meaningless – this is one of the reminiscing questionings from the Brillo Box piece.
Why do I think the Brillo Box is symptomatic? Andy Warhol was surrounded by the “art scene”. Andy Warhol saturated art’s connection with frivolity, while his work made an ode to it. I believe his work to be devoid of spiritual connotation. Even though, in today’s world, his work’s frivolity has reached an unsustainable peak and urges for change — we live at the height of artistic banality. (Although I accept to be called moralistic or binary in making such statements about Warhol. Perhaps I am, but I need to find arguments that generate more contradiction in his work for me – the figure of Andy Warhol does not captivate me, even if this work is an important milestone in the course of an artistic narrative).
Where am I going with this? What conclusions do I draw from all this?
Firstly: the artistic object seems to have always been, even before Giotto, a way for man to relate to something unknown to himself, whether it is God or heat, but art has always been a connecting tool with a very deep meaning for man – for both spectator and artist. We live in humanity’s most brutal moment of superficiality. What we call art nowadays, or what is produced in art, has no such purpose anymore. There is no longer an interest in the other, there is no longer an interest in ritual, in community, in building nations, in building deep and precious meanings for life.
This lack of interest does not mean that there is not a need for art; we are just not able to identify it, we are terrible at reading necessity’s symptoms, we are terrible in recognizing the urgency for spiritual bonds. Today the way in which art collecting works is superficial and meaningless. No wonder the art market, at a time of crisis, is also experiencing a crisis.
BINGO! the art object would have to be an object, a movement, an event, a speech, an articulation that precisely rescues its subjects from a crisis, it infuses oxygen into an almost extinguished flame, which lifts the subject from bed and energizes his day; it makes the subject turn Netflix off and do something useful for their lives – even if it is washing the dishes, but doing so with passion, cleaning with heart, washing with love, loving life for its simple pleasures, having passion for thinking about a problem, simply having passion. I believe that this is what a person actually buys in a moment of crisis, this is what the individual buys deep down, when buying art – and note, I am not talking about a sculpture, a drawing, or a painting, I am perhaps talking about any other word, even if it needs to be invented! There is something very profound we are trying to say to each other but we cannot – something was stolen from us and we are chasing our own tails to find it! We are chasing modernity’s skinned tail to find it – but modernity’s tail is meaningless at this time!
Art’s secret truth is perhaps that it is always dealing with the real issues of an epoch, a nation’s issues, art is very interested in saving lives, even if it is on a tiny piece of paper. Although we want to preserve our useless lives with grandiose things that have no real meaning, all the time, the artist, or the social agent, as I see RES, is the attitude of wanting to save your life and the lives of other people with daily attitudes. And while we want to draw, paint, sculpt, exhibit, write great texts and have great projects, RES really just wants to be fully involved in the way he organizes his library, for example. Art is actually a fetish! The object itself is just a fetish. To me, what is at stake is the potential link that this work, this movement, or this agent, manages to establish with the world. The meaning that this action can generate in other people. The will of life this work inspires in a person! The medium does not matter, the display does not matter, the language does not matter, what matters is that it is able to manifest itself outside itself, the important thing is the conversion from something useless into something essential in someone’s life.
According to Arthur Danto3, Duchamp and Warhol put an end to Western art’s narrative, without a doubt, because, faced with art’s problems in the 20th century there was really nowhere to go. I do not think that RES presents a solution to Danto’s problem, or that he represents the end of modernity, however, RES just radically closes the door to modernity, therefore seeing the end of art, not as a problem, but as a solution for the beginning of a new narrative. His work begins a narrative of something that has yet to be named, a narrative that builds a bridge for anthropological art, between the social agent of the tribe and the new social agents of the cities. I would even say that his work rescues something essential for humanity to survive in face of this pandemic: to not have a daily subterfuge and maintain one’s sanity, to create a life within oneself.
Parte III
Um trabalho realmente do acesso não tem nada a ver conosco, não se trata de um trabalho sobre “eu”. Realmente quero enfatizar esse ponto. Um trabalho de arte do acesso não é um simples trabalho artístico do artista. Se o acesso só é possível quando não mais estamos no comando – e é isso mesmo –, então realmente é como um presente, uma invocação, e não algo que se adquire deterministicamente da própria experiência, melhor ainda, não é algo de nossa posse.
Quase todos pensam que arte nasce da experiência do artista, e isso significa: da experiência adquirida intelectualmente. Pensam que esse fenômeno arte é afetado pelo lugar que você mora, ou pelo que você faz. Mas o trabalho mesmo de arte não tem nada a ver com a biografia do sujeito, com suas habilidades características, com seu conhecimento, não tem a ver com nada disto.
O acesso é o início, o meio e o fim.
Aqui de novo, devo enfatizar que você já teve muitos momentos de acesso, os quais passaram despercebidos, pois você está imerso em uma ideia intelectual da vida, vivendo a vida de forma intelectual, sendo ensinado e acreditando completamente e somente na vida das evidências, o que pode ser provado pelo seu modo particular de ver.
A dependência no intelecto é tão inteiramente o que é ensinado que algumas pessoas associam a ideia de parar de pensar com a morte. Quase todos pensam que seria algo muito perigoso e alguns creem em que isso levaria a uma dissolução da sociedade. Mas há aqueles que dependem do acesso, mesmo se considerando intelectuais. Dessa forma, quando essas pessoas têm que tomar uma decisão, elas vão dormir na esperança de que quando acordarem, saberão o que deve ser feito, e assim prosseguem.
Essa é a diferença. Um intelectual decide baseado nas evidências que tem, mas outros respondem a alguma coisa que lhes escapam.
E aqui devo dizer: superstição é o maior inimigo da arte, é pior que o ego. Superstição é uma crença em poder ou poderes, é uma crença de que esse poder pode ser adquirido por você. Você então, uma vez que lhe foi concedido poder, está em uma posição muito poderosa.
Alguns artistas caem na armadilha de pensarem que com o acesso, foi-lhes concedido poder para conduzirem o mundo para fora das trevas, o “complexo do messias”. Ele então se coloca como uma grande unidade necessária para a salvação da humanidade. Isso é completamente equivocado. Esse é um caminho certamente equivocado, mira um caminho muito problemático.
Por favor, eu te imploro, tente não pensar “eu, eu, eu, eu”. Confie em mim, você nunca terá nenhum poder.
Se o outro não respondesse ao seu trabalho com sua comoção, e devolvesse ao trabalho também um pouquinho do que o trabalho tem de acesso, o trabalho estaria morto e você não existiria1.
Nós não somos os instrumentos do destino, tampouco somos os poderes do destino. Nós somos meros materiais do destino.
Por favor, lute contra a coisa do messias, se você se coloca como uma grande coisa útil, então você se desliga do acesso, que depende exclusivamente do inútil.
Eu não digo que é algo possível de ser feito o tempo todo, pois somos mesmo muito selvagens, naturalmente, mas tente estar alerta para essa questão do poder.
Vendo R.E.S. trabalhar, me dou conta, considerando a velocidade de seu pensamento prático, a velocidade com que ele adquire soluções, com que ele busca novos utensílios de guerra, novos instrumentos de batalha, instrumentos, armas que o salvam em uma batalha, as soluções vem, não como “soluções plásticas”, mas como soluções que realmente o salvam de não ser derrotado, derrotado por ele mesmo, pela sua insuficiência, ele quer poder ser derrotado pela suficiência, pelo fracasso em construir uma obra que será maior que ele mesmo, o seu fracasso se torna, não em não ser capaz de produzir, mas o de produzir algo que é maior que ele. Ou então, voltando a considerar o próprio modo como age, me dou conta de que ele mesmo, com tantos assistentes, é um assistente, Rubens recebe ordens e as segue, é como uma antena que capta sinais, se instrumentalizou para poder colocar esses sinais no mundo, criou todos os artifícios necessários para que esses sinais existam para fora da latência. Esses sinais, ou, o seu desenho já existia antes dele, já existia antes de ser feito, mas Res gerou um espaço propício para que o desenho pudesse existir em outra ordem de existência, existir enquanto o que ele se apresenta diante de nós – é mesmo um ato generoso, o de fazer algo que já existe (mesmo que escape nossa visão), para esse mundo, matérico, como mesmo uma encomenda. O desenho é uma encomenda que passa por R.E.S. para existir, R.E.S. é o veículo de existência dessa encomenda, é o carteiro, que busca a encomenda em um lugar e o leva para outro, R.E.S. busca o desenho no kairós, em um espaço invisível que se encontra entre ele e o papel, e o traz para a natureza, e assim, irrompe as distinções entre esses mundos, entre os tempos, o desenho se torna justamente a fresta, a possibilidade de reunião desses dois mundo, que na verdade estão cindidos enquanto “dois” por uma crise espiritual do nosso tempo. Talvez esse possa ser um termo a se pensar, o artista enquanto o carteiro, que recolhe a carta em um banco de dados e de códigos e de leis próprias e a traz para outras leis, para outra esfera, outra galáxia, ainda que essas duas galáxias sejam a mesma, o carteiro faz o trabalho sujo de transfigurar uma coisa para outra, transformar um código amorfo em matéria, mas matéria também amorfa, ou seja, a coisa não deixa de ser o que ela já era, mas agora se apresenta encarnada no desenho diante de nós.
E então essa encomenda passa a existir dentro do universo plástico, cultural, temporal, social de R.E.S., assim como foi com Cézanne, ele foi o veículo de existência de sua pintura, e é aí onde ambos, R.E.S. e Cézanne se encontram, a primeira camada do desenho pode representar ou situar o artista em uma história cronológica, mas depois dessa camada, os desenhos dividem o mesmo sítio histórico anacrônico. A primeira camada do desenho é o artifício que sustenta o desenho que na verdade é o que situa-se entre o anteparo da pintura de Cézanne e o desenho de R.E.S. – entre esses dois encontram-se ambos. E como o Rafael Chvaicer muito precisamente falou, “R.E.S. fez algo que Duchamp gostaria de ter conseguido fazer: eliminar a mão do artista, através da mão do artista” – a mão de Rubens é somente um instrumento, como mesmo disse antes, um canal, um dispositivo de ação de algo que não é dele. A questão então é investigar qual o trabalho para poder se despossuir de tal forma, e só então nessa despossuição, poder estar em devolução de si mesmo. Benjamin em sua passagem sobre o colecionador diz que um colecionador pode ter muitos objetos, mas isso não significa que ele os possui. Rubens ao abrir mão de se ter, é possuído por ele mesmo – e sabe que ele mesmo não lhe pertence.
Parte II
O acesso esquiva-se o tempo todo, é algo que não pode ser ensinado ou administrado de modo algum. Não é possível o manipular, muito menos o controlar. O acesso é fora da lei.
Quando crianças perguntam – “o que devo brincar”, você deve dizer que não sabe, não se importar em responder esse tipo de pergunta, possibilitando que elas sejam independentes nesse lugar.
O que é a experiência da criancinha sentada na sujeira: ela de repente é assaltada por uma felicidade, sente-se livre, ri, e corre, e cai. Sua face brilha – estou certa que você já deve ter visto isso.
“A luz era extraordinária, era um sentimento extraordinário”, é o modo que muitos adultos estão descrevendo momentos singelos de acesso. Apesar de o terem por toda suas vidas, não dão muito valor a esse tipo de momento, e são sempre pegos de surpresa1.
Os adultos são muito ocupados, lhes foi ensinado a estar o tempo todo correndo.
Mas não dá para estar na correria e ao mesmo tempo no acesso.
Há tantas coisas ditas e pensadas sobre as relações, esse é um dos motivos porque pensei que deveria falar um pouco sobre o acesso – que não tem nada a ver com essas relações e com o pensamento2.
Somente quando as relações são gastas e quando o pensamento se mostra insuficiente, estamos no que diz respeito ao acesso.
–
Seu caminho está embaixo dos seus pés, queira você perceba ou não. Essa é a coisa mais importante que vou dizer, mas não vou me alongar sobre isso, você não entenderia mesmo, quanto mais eu falo, mais a coisa se distancia.
–
Se você for na direção do acesso e todos os artistas também fossem, é necessário dizer que teríamos que abrir mão do poder das nossas decisões.
O trabalho de arte não é um processo intelectual, certamente já devem ter ouvido isso antes. “Não ser um intelectual” e “abrir mão do intelecto” são entendidas como duas coisas distintas, quando na verdade estou dizendo que são a mesma coisa.
Mal podemos suportar a ideia de abrir mão do intelecto. “Ser uma pessoa inteligente” parece ser a única coisa que ouvimos desde que nascemos.
Mas o caminho da intelectualidade e o caminho do acesso são dois caminhos incompossíveis3. Se você é mesmo um artista, o caminho intelectual tem que ser sacrificado.
Parte I
Quero falar sobre o trabalho “trabalho de arte”. Falarei disso que chamo de “acesso“2, do atelier, amigos da arte, e o temperamento artístico3, mas quero que fique claro que estou falando o tempo todo sobre esse trabalho. Esse trabalho é muito sério, principalmente levando em conta isso que tentarei mostrar quando falarei do acesso. Na verdade, o trabalho é muito mais importante do que nós.
Algumas vezes, em minha cabeça, eu me coloquei muito como superior ao meu trabalho, e sofri muito, como consequência. Pensava o tempo todo só em mim, era só “eu, eu, eu, eu” e sofri, e o trabalho sofreu, e com isso, sofri ainda mais. Pensava que eu era importante. Fui ensinada a pensar que o autor é grandioso e que o trabalho não importa. Agora vejo “a coisa toda” de maneira muito diferente.
Pensar que o autor é grande e que o trabalho também é grande, esse posicionamento vaidoso não é possível; e também, pensar que sou pequena e que o trabalho é pequeno, esse posicionamento modesto também não é possível4. Continuarei falando do acesso e quem sabe assim a única posição possível se esclarecerá.
Ao descrever o acesso, não quero dar margem para ninguém pensar que estou falando de religião. O acesso é um momento muito feliz que nos assalta.
Muitas pessoas ficam tão assustadas por um momento de acesso ou no estado que conduz ao acesso – que é tão diferente do estado que estamos no nosso dia a dia –, que por isso pensam que são únicas.
Acho que isso não poderia estar mais distante da verdade. O caminho do acesso está aberto o tempo todo para qualquer um que não esteja com a mente entupida com pensamentos, e preocupações, portanto o acesso é experimentado por todos, quer eles percebam ou não. É uma coisa que insufla5, mas não é uma coisa que podemos manipular, é somente um estado que nos atravessa; não é um poder6, é um estado de paz e de consolo – até para os animais e plantas.
Não pense que o acesso é uma coisa sua, se fosse algo somente seu então ninguém seria capaz de se comover com seu trabalho. Não pense que é algo reservado para poucos ou qualquer coisa do tipo.
É um estado de mente limpa, vazia, livre de picuinhas. Claro que sabemos que um estado de mente vazia não dura o tempo todo, então diríamos que o acesso vai e vem, mas ele está lá o tempo todo esperando que estejamos disponíveis (com a mente limpa) para ele de novo. Portanto, podemos dizer que é insuflado.
Crianças tem mais momentos em que elas estão com a mente vazia (de picuinhas) que adultos. Elas estão, portanto, mais disponíveis ao acesso que os adultos.
A soma desses momentos de acesso resulta nisso que nos referimos como “sensibilidade”, e é a coisa mais importante, igualmente, para adultos e crianças, apesar de ser muito mais possível para crianças.
Alguns pais colocam o desenvolvimento dos passos sociais à frente do desenvolvimento estético. Crianças pequenas são levadas ao parque, levadas a escolinha primária, e assim direcionadas à um começo – mas aquela criancinha sentada sozinha na sujeira e esquecida é aquela que naquele momento está mais aberta ao acesso e ao desenvolvimento da sensibilidade.
Parte 1
O que mesmo está sendo dito quando se diz que RES é um louco? Gostaria de refletir sobre essa afirmação, considerando especialmente que a palavra louco é uma palavra eminentemente ocidental. Uma vez que RES tenha construído o seu próprio mundo, sua própria cultura, esse conceito não mais me parece fazer sentido, esse conceito parece perder sentido dentro de seu contexto1 – e é isso, justamente, o que salva RES de realmente “não poder mais voltar”, como um “louco de hospício”, já que, apesar de ter ido, ele também concomitantemente, não saiu daqui2.
Tenho me interessado muito em refletir sobre as estruturas psíquicas, sociais e econômicas de outras culturas, de culturas primitivas, por exemplo – como se dá a psiquê de um aborígene? Como são as relações maternas e paternas de um Hopi? Qual a relação da esquematização de Freud da psiquê do homem ocidental com leis ocultas do universo? Onde Freud encontra Jung? Qual a relação da trieb, da histeria, das ninfas, da esquizofrenia, Warburg, Nietzsche, Hölderlin, o canto da sereia, o incesto, que pulsões são essas? Como desenvolver novos displays para essas pulsões tão enigmáticas do homem? Como outras culturas lidam ou colocam tais pulsões? Para o homem civilizado, teleológico, maniqueísta, determinístico, o seu “descontrole” ou a sua “ninfa”, sua “loucura” fere brutalmente as leis de sua sociedade, fere a ordem de sua civilização – civilização esta que está enraizada em sua ossatura, diria ainda que é como uma civilização psíquica; a ninfa fere o modo como o homem está organizado psiquicamente para viver nesse mundo, para viver as demandas “comezinhas” de seu tempo. Qualquer coisa que escape às leis ocidentais de um tempo enlouquece o homem, não sabemos mais o que fazer com a nossa contradição – não temos espaço em nossa casa para a ninfa, por isso, quando ela chega, ela chega arrombando tudo, destruindo todos os cômodos; quando a ninfa aparece, evidentemente, como não há espaço, ela destrói tudo que a impede de existir, e como sabemos disso, pois a ninfa habita dentro de nós, hiberna em nós, obviamente sentimos medo e fazemos de tudo, não para organizar os cômodos da casa para receber a ninfa, mas fazemos de tudo para evitar qualquer tipo de possibilidade que a ninfa entre na casa. A ninfa porém é muito mais inteligente do que nós, ela vai entrar hora ou outra, de qualquer jeito.
Mas me pergunto, por que então que um índio Hopi não enlouquece? Por que um Hopi pode se submeter a rituais, como o ritual da serpente3 e não “enlouquecer”? Como é que um índio Hopi convive tão bem com a ninfa sem “enlouquecer?”
O que homens como Warburg, Nietzche e Hölderlin (os três, curiosamente, grandes gênios alemães) apesar de terem sido possuído pelas ninfas, apesar de terem entrado em lugares realmente surpreendentes deles mesmos, e terem isso datado, o que eles não conseguiram gerenciar e terem morrido na “loucura”, ou, poeticamente, terem tido suas casas arrombadas completamente pela ninfa? O que distingue um Hopi de Warburg e o que aproxima RES de um Hopi?
Sem duvida há algo que RES construiu que aparentemente o salva da loucura – apesar de que eu não diria aqui que ele se salvou da loucura, é justamente essa epistemologia que quero inverter, esse modo de articular o problema que eu quero ressignificar, pois Rubens não se salvou de nenhuma loucura, mas a transformou em algo que faz parte constituinte da gramática diária de seu corpo, abriu um espaço para a loucura em seu corpo. Então o que fez, não foi se salvar da loucura, não foi não estar na loucura e mesmo assim ser possuído pela ninfa, mas o que RES fez está mais próximo das bordas, está mais próximo de uma organização profunda dos espaços de sua casa para que a ninfa possa entrar pela porta, e não ter de arrombá-la; RES se interessou pelas bordas, pelas cercas, pela estratégia de alcançar algo. RES passa quase todas as horas de sua semana construindo um ambiente favorável para a loucura dentro de sua casa – de seu corpo –, alterou as leis de sua própria civilização psíquica e estrutural, cotidiana, de forma que hoje é um homem que vive na cidade, mas transformou todas as leis de sua cidade em leis de sua tribo. Não podemos esquecer, porém, que toda tribo exige seus sacrifícios – e é dessa forma que RES articula sua vida, é disso que se trata sua organização, também para entender quando algo precisa ir para outra coisa poder nascer. Assim como um Hopi, RES levou de volta as leis de seu tempo para leis regidas pelo imediato4, e a partir dessas leis, articula suas decisões tão enigmáticas (e aparentemente muitas vezes contraditórias) cotidianas. Por isso, podemos pensar que RES vive na cidade, mas a cidade em que RES vive não é a mesma cidade em que vivemos.
Mas se a condição de ir é não retornar5, como é possível RES ir e voltar ao mesmo tempo? Como é possível estar em dois lugares ao mesmo tempo6?
RES construiu um lugar que em si não tem retorno, então não há assim perigo de não retornar mais, já que ele já está no sem retorno, está aqui mesmo em seu lugar sem retorno; assim, não precisa sair de um lugar para ir a outro – ele já se encontra, a todo tempo em outro lugar. A questão configura-se de forma lógica. Ele já renunciou um lugar antes mesmo de ir, por isso ele pode sempre voltar e nunca voltar, ao mesmo tempo.
Dessa forma, podemos dizer que Rubens não é um louco, mas é um selvagem, um selvagem que também é um intelectual, um selvagem que tem conta no banco, um selvagem que possui uma biblioteca, que tem 30 alunos, um selvagem ocidental. Dizer que RES aproximou mundos significa dizer que ele feriu as fronteiras de diferentes civilizações para que elas pudessem coexistir, ou ainda, para que um novo homem pudesse ser criado, assim também pensava René Char quando escreveu que “os homens de Lascaux e suas pinturas poderiam ainda revelar milhares de “coisas escondidas” inescrutáveis, inclusive – e especialmente – para os homens enviados nas missões espaciais do século XX7”. Isto é, o homem do futuro tem que resgatar o homem das cavernas para sobreviver.
Parte 2
Que lugar sem retorno é esse que está? Como é que RES consegue estar lá, em sua torre8, e aqui ao mesmo tempo? A questão é que RES transformou o próprio “aqui” em uma outra dimensão – eis o lugar que não há mais retorno, uma ideia de “aqui” foi realmente abandonada, foi deixada para trás no caminho, foi deixada para trás para que outra coisa pudesse ser construída9; apesar de pensarmos que RES está aqui, digo, no espaço psíquico em que estamos, ele não está – não somente no espaço psíquico, mas no espaço psíquico, espiritual e também físico: Rubens transforma as atividades mais banais desse tempo em atividades que estão a serviço desse espaço outro que construiu. Utiliza de todos os recursos de nosso tempo, a economia, o espaço, Marte, as disputas na Venezuela, a ruptura da barreira em Brumadinho, Jeff Bezos, Elon Musk, o mercado financeiro, o insensibilizador Zilka, usa todos os aparatos de um tempo a serviço de sua “torre”, usa todos os aparatos de um mundo para outros fins, com os fins de um trabalho profilático para se manter vivo nesse outro mundo. Da mesma forma que um índio Hopi utiliza os recursos que há em torno dele para uma cerimônia, RES faz a mesmíssima coisa – esse é o modo que pode se aproximar do Hopi, de outra cultura, adentrando profundamente em sua própria, é o modo que ele pode ser um xamã, é o modo como ele pode receber diariamente a ninfa. RES faz o ritual da serpente não com uma serpente na boca, mas com um papel Arches na parede e uma barra de grafite na mão. Tem que ser orgânico com o seu ser, com seu tempo, a palavra só faz sentido dentro de um contexto. E RES tem um contexto muito claro para se utilizar de todos esses recursos.
Parte 3
RES construiu com sua obra, um novo corpo, uma nova cultura enraizada em seu próprio corpo, onde, apesar das leis não serem regidas mais pelas leis do nosso tempo, ele usa os instrumentos das leis do nosso tempo e os utiliza como instrumentos nas leis da própria ninfa – essa é sua barganha com a ninfa, essa é sua moeda de troca. Uma manobra sua muito violenta foi a de construir um ambiente favorável para a ninfa poder entrar e não destruir tudo, um ambiente onde a ninfa possa entrar, sentar e tomar um café, ainda que seja de seu modo (os desenhos feitos nas sessões de sexta são um excelente registro do “café tomado pela ninfa” a seu modo). RES construiu com sua obra uma nova configuração da morada de seu próprio sujeito, onde ele pode abrir muitas outras portas de seu ser, mas sobretudo, a obra espetacular não é somente o registro desses outros espaços de sua morada, mas também a sistematização da possibilidade da construção de um novo homem, a sistematização da invenção de um novo homem que está em latência nele mesmo, a organização da vida de forma que ela possa sempre receber visitas inesperadas e não entrar em colapso – eis o que chamamos de o méthodo.
RES vive a loucura diariamente, como um Hopi vive a loucura diariamente – dentro das leis que regem sua “civilização psíquica”; a loucura não configura-se mais como antítese de sanidade, a loucura é o seu estado diário, mas os recursos que o cercam garantem que ele não seja trancafiado em um quarto com uma maca.
RES dilatou a loucura para todos os seus campos de fazer, a ninfa está solta em sua vida, a ninfa não aparece somente no desenho, no texto ou nas aulas, a ninfa aparece na sua contabilidade, na sua leitura do jornal, no seu café quando acorda, na sua organização obsessiva, a ninfa e a Sofrosyne cada uma faz um pouco o papel da outra, as fronteiras que dividiam uma da outra foram dissolvidas. Acredito que é isso a grande chave do méthodo, vejo aqui um bom modo de entender melhor do que se trata mesmo as assistências, a insistência por organização, insistências por mapas e diagramas, diagramas de metas, procedimentos, estratégias, cálculo, cuidados com o corpo, compreensão do corpo de forma dilatada, enfim, o méthodo não quer formar um “bom artista” para o nosso tempo, mas o méthodo quer fornecer recursos para construir o homem do futuro, um ser humano que possa entrar cada vez mais nas portas trancadas de si sem enlouquecer, isto é, sem que ele vire um autista, um solipsista, sem que ele se desligue desse mundo. O méthodo quer construir um ser humano que insira o seu mundo dentro desse mundo, que possa estar por mais tempo em estados de atravessamento e saber o que fazer com isso, quer construir um sujeito que possa desfrutar não somente mais da vida, mas da própria matéria de seu corpo encapsulado, um sujeito que possa saber que está sendo regido um pouquinho pelas leis do imediato. O corpo é a nossa nave e a nossa nave é a única coisa que pode nos levar para lugares impensados de nós mesmos.
Precisamos abandonar uma parte de nossa nave para que possamos continuar a nossa viagem, para que possamos continuar a nossa missão. E só com esse abandono que também poderemos retornar (e ser o que já fomos um dia).
Impressionante como as imagens são idênticas.
O papel em questão não se trata de uma superfície branca, o papel que Rubens odeia perder ou que não pode perder, é um papel designado pela vida a ele que ele já negociou de antemão, é um papel quem ele deve, que está em dívida, e tem de pagar. Perder para o papel seria ser leviano ou preguiçoso ou infiel à sua própria palavra – Rubens cava diariamente o próprio túmulo, cria problemas para justamente não poder fugir deles, faz afirmações para poder prová-las, a palavra não é uma palavra para Rubens, como é comumente, mas a palavra se tornou ou retornou a ser sua própria carne, sua vida, a palavra proferida por RES não é RES que profere, mas é a palavra que se profere através de RES, é a vida que RES carrega que encontrou na palavra um modo de existir enquanto display, enquanto coisa, e assim a palavra deixa de ser palavra e retorna para sua origem de ser pulsão, volição, espírito. RES ficciona a vida de tal forma que em um determinado momento sua vida já se confundiu com essa ficção, não há mais como discernir a ficção da realidade, Rubens tem uma dívida com a ficção que inventou: de tanto ficcionar, a ficção se tornou sua própria realidade, sua condição de existência, a ficção se tornou quem é, a ficção movimentou sua estrutura óssea, alterou a cadeia de seu DNA, e agora não tem mais volta.
Muitos comentários permearam a falta de cansaço de RES em relação aos demais na sessão de desenho. Não consigo enxergar dessa forma, não acredito que RES estivesse necessariamente menos cansado do que qualquer um naquela sessão de desenho, na verdade penso que muito provavelmente RES era o mais cansado de lá, mas ele inventa esse espaço ficcional nele mesmo, subverte o uso comum que fazemos do cansaço, e o transforma em motor de arranque do desenho, assume o cansaço e o utiliza para desenhar – assim como Artaud2 que entrou nas vísceras do “não ter nada para dizer”3 como ponto de partida para sua obra, Rubens entrou nas vísceras do seu corpo cansado no final da tarde da sexta feira, para poder utilizar o ácido no suco do cansaço para se movimentar, como matéria prima, como partida. Entra em outra ordem de seu cansaço, em um espaço secreto do cansaço, entra na intimidade do cansaço, talvez para mergulhar no espaço de suas regras e não ser mais conduzido pelas regras, para estar em diálogo com as regras, e talvez para levar o rigor do cansaço, a autoridade do cansaço para ser a autoridade do gesto no desenho, o rigor de sua implicação com aquela superfície resistente ao ponto em que o desenho possa conter as regras do cansaço, ao ponto em que o extremo de um aprisionamento possa vir a ser um tropeço na liberdade de si mesmo.
É como tudo em sua vida: perverte as leis comuns das coisas, e de tanto pervertê-las, com o tempo, as outras possibilidades latentes das coisas vão surgindo. De tanto insistir no cansaço, de tanto suportar não fazer imediatamente o que o seu corpo está condicionado a fazer com essa informação do cansaço, o cansaço abre-se e revela-se um agente químico poderosíssimo para muitas outras coisas além da resposta do sono, do repouso. Nosso corpo é um organismo precioso, possui infinitos tipos de inteligência que acessamos muito pouco, e Rubens quer invocar justamente isso, abrir mão das respostas que estamos condicionados a dar ao nosso corpo, e assim deixar com que o corpo possa operar em um tilt, e assim ver qual a resposta que o corpo dará a essa provocação. Como um tabuleiro, onde as peças estão sempre organizadas de uma forma, Rubens já parte subvertendo uma organização para ver como pode prosseguir o jogo sobre outro ponto de vista. Subverte um tipo de display do seu corpo, subverte um tipo de display do seu tempo, para invocar outras possibilidades de respostas em latência, para devolver à vida uma riqueza esquecida.
De tanto, por tanto tempo ter inventado esse espaço ficcional de subversão do display das respostas às coisas, que agora ele tem uma dívida com sua invenção, tem uma dívida com seu ser, com seu outro, com seu poder, não há mais volta, despertou latências de si e agora paga alto por elas. É sempre muito mais agradável pensarmos que não podemos, a questão é que RES ao longo de sua vida afirmou que podia em praça pública e assim criou uma dívida com esse poder. O poder é um ávido cobrador.
E assim cansado, um escravo desenha um furgãozinho em um papel, humildemente, depois de uma longa semana, para que o furgão possa finalmente o conduzir para o caminho que ele há de ir nessa sexta feira. Circunscreve um espaço para que o acontecimento possa surgir. Eis o lugar onde Rubens quer chegar. Temos uma ideia de chegada que diz respeito a um fim, a um destino, a um término, enquanto para Rubens, a ideia de chegada é enfim o começo, a chegada é quando o corpo cansado de tanto ser provocado, vira-se aquela outra coisa que será para sempre desconhecida para aqueles que vão para casa simplesmente descansar; a chegada é quando Rubens sente um novo corpo apropriando-se dele e rasgando sua antiga pele para fora, o desenho só começa nesse estágio, e para se chegar a esse estágio, é necessário um reservatório de fôlego, um fôlego construído por anos de uma vida, por décadas de gerações.
De tanto ficcionar, de tanto criar artifícios, técnicas, instrumentos, mecanismos de viver essa vida de forma simplesmente diferente, uma hora, o motivo por trás da ficção, a volição ficcional o ficciona, invoca-se em RES, uma hora Rubens deixa de ser o sujeito da ação de ficcionar e se torna o objeto que sofre a ação da própria ficção que ele despertou, nele mesmo. É como um bicho que estava hibernando, e Rubens o acordou, e agora o bicho quer algo de RES.
Ele se torna uma ficção, ele se transforma naquilo que o leva a desejar ficcionar, se transforma naquilo que deseja a invenção. De tanto inventar um mundo, em um determinado momento, Rubens é recebido diante de nós por outro mundo, não o que ele estava inventando mas o próprio mundo que situa o desejo da invenção.
No abismo, ou você navega ou naufraga. Nesse lugar em que RES se encontra, no risco em que se colocou, perder então para o papel seria o equivalente à morte, já que o papel é o único corpo com o que hoje pode contar para existir. A cada sessão de sexta abandona seu corpo por alguns momentos e confia no papel, nessa jornada que passa pelo papel, o seu corpo por vir. Por algumas horas Rubens se abandona, se joga em um abismo para poder se resgatar então em um desenho que ainda não existe, e nesse salto, no vazio do abismo, resgata o desenho, e este é também esse novo corpo para se manter vivo. Mas aquele que salta tem que estar instrumentalizado para sentir o momento em que a faísca finalmente vira chama dentro de si, e a chama o chama, o convoca, elege enfim aquele que vai ser o veículo de seu calor.
Lembrei de quando fui à Capela Sistina, há dez anos atrás, me lembrei muito do momento em que entrei lá, depois de ter passado o dia ouvindo uma guia contando uma história toda que eu particularmente nunca consegui me concentrar muito para essas guias e o que elas contavam, e inclusive me sentia muito mal por isso, por uma suposta “falta de interesse” que vinha carregada de uma conotação completamente negativa pra mim – me estava blindada a possibilidade de pensar que a minha orla de interesse poderia passar por outro lugar. Apesar disso, assim que entrei na Capela, lotada de turistas, fiquei tão impactada, que entrei em prantos, foi tomada por uma comoção que nunca antes havia me assaltado com tanta violência. Hoje me dou conta com mais distanciamento e discernimento, que não chorei pois achei a pintura de Michelângelo algo “bellissimo”, mas que os códigos daquela pintura, o discurso daquela pintura ultrapassavam a pintura de modo que ela não se apresentou mais pra mim enquanto algo pictórico somente, mas enquanto display para algo que nunca imaginei poder ser sustentado, foi exatamente naquele momento que me dei conta de que arte não tem nada a ver com o que eu vinha pensando que era arte, e que eu mesma não sabia pensar, e que o Michelângelo deixou no mundo um resquício de algo que poderia ser pensado através de mim.
Lembrando disso tudo hoje, voltei a me comover, e me dar conta de que te acompanhar é retroceder quinhentos anos, me dei conta de que o que eu vivo e assisto diariamente, é ver outro homem construindo esse display , esse organismo vivo dele mesmo, transporto para fora. Rubens, obviamente podem me achar fanática, mas muito intimamente, e por enquanto isso pode não valer para o mundo, enquanto eu não for capaz de encontrar o meu modo de dizer , isso pode não valer, mas divido com você que eu sei que o que você está fazendo, é muito maior do que esse tempo e o que se entende hoje pelo que você está fazendo. Muito maior inclusive do que eu ainda assimilo da minha própria compreensão. Mas uma coisa é muito íntima e verdadeira para mim: o que você faz me dilata e me faz descobrir fontes de compreensão que faz com que uma “falta de interesse” de um dia, pode ter sido a minha salvação. Eu descubro a minha vida através do seu diálogo com Michelângelo.