COLEÇÃO ANNA ISRAEL

CV

Algumas questões sobre o Japão — técnicas e filosóficas 27052023

 

1. É fascinante como a língua é um reflexo de quem somos, de nossa cultura. Somos, de certa forma, prisioneiros não da língua em si, mas de um modo de existir moldado pela forma que falamos, a partir da maneira como nos expressamos verbalmente para o mundo. A questão não está apenas em se expressar verbalmente, mas em existir verbalmente, projetar-se para fora de si. Acredito que a arte surge como um meio de atravessar essa prisão, mesmo utilizando a língua. Na poesia, por exemplo, podemos atravessar, transgredir, extrapolar as formas de existência impostas pelas regras de cada idioma. Penso que a arte existe como uma outra forma, como uma “invenção da língua do espírito de cada um”, uma maneira de se dizer para fora de si que atravessa as regras impostas por uma cultura, por uma nação, por um tempo, ou até mesmo uma tradição. Fazer arte tem a ver com entrar no espaço mágico e mítico de cada um, fazer arte é uma forma de inventar-se a si mesmo para fora das limitações da língua, acessando uma linguagem proibida de si mesmo. Nesse sentido, tenho observado cada vez mais manifestações humanas em diversos campos que extrapolam as mídias conhecidas da arte, mas ainda assim fazendo algo que se assemelha a essa transgressão, a esse atravessamento que penso ser essencial da arte. Tenho percebido muito isso na gastronomia.
Neste momento estou em Tokyo, no final do primeiro mês viajando, e a culinária tem sido o lugar em que tenho tido contato de maior predominância. Ela envolve não só o paladar, e o sentido gustativo e olfativo, mas também, como descobri recentemente, o tato (os sushis são tradicionalmente comidos com as mãos para sentir o calor do arroz em contato com o frio do peixe) e o visual (alguns restaurantes de sushi servem o nigiri em cima de um balcão de laca preta para criar contraste com o branco do arroz e as diversas cores dos peixes, para que seja apreciado o brilho e cores de cada um. Embora cada gastronomia possua suas regras e tradições muito enraizadas, percebo que cada chef aqui, cada “mestre” do restaurante, buscam atravessar um pouco as fronteiras da tradição para poder deixar a sua marca na comida. Isso é o que diferencia um restaurante de outro. Por outro lado, há algo na ideia da tradição aqui que não se trata de um aprisionamento, mas de uma relação espiritual com o fazer, nesse caso, o ato de cozinhar. Há uma transmissão de conhecimento que não diz respeito somente à forma da coisa, mas está relacionada a uma epistemologia, a uma maneira de existir no mundo, a uma forma de gratidão, uma forma de acessar o espírito. Isso faz sentido, considerando o quão forte é o budismo e o xintoísmo no Japão até hoje. Mesmo nas regiões mais comerciais e luxuosas, encontra-se pequenos santuários (“shrines”) e as pessoas locais, de terno e gravata em seus horários de almoço, por exemplo, entram para fazer uma pequena prece, reverenciando antes de entrar e sair. Diferente da religião católica, as preces não consistem em textos decorados que os fiéis recitam, mas a prece estão mais relacionadas a um agradecimento, a uma reverência, não a um Deus, mas a algo maior.

Itadakimasu, por exemplo, é uma expressão que os japoneses sempre proferem antes de iniciar uma refeição, assim que a comida chega até eles. Essa palavra, ao contrário do que eu pensava, não implica necessariamente um agradecimento a “Deus” pela refeição, mas é uma maneira de expressar gratidão a todos os envolvidos, mesmo que ausentes, que contribuíram para que aquela comida estivesse ali. Não inclui apenas quem serviu a refeição, mas abrange desde aquele que colheu os grãos de arroz, ao pescador que fisgou o peixe, incluindo entidades superiores que tornaram aquele acontecimento possível; em essência, é um agradecimento a todos que tornaram aquela refeição possível. Itadakimasu (segundo os dicionários): “eu humildemente recebo essa comida” — pode ser dito em voz alta, sussurrando sozinho ou em conjunto.

Ao mesmo tempo, a língua japonesa, como me explicaram tanto uma japonesa, quanto um estudioso da língua japonesa, é extremamente imprecisa. Isso significa que, assim como o japonês e a atmosfera que eles desejam tanto criar em seus lares, é blurry, enevoante. O japonês nunca vai ser preciso ou direto com outro japonês, pois isso seria considerado desrespeitoso, isso seria invadir o espaço privado do outro. No Japão, a distinção entre privado e público é muito sério, esses dois mundos não se misturam. Não é por acaso que, antes de entrar em uma residência, há um degrau, um espaço onde as pessoas devem deixar seus sapatos, evitando assim a mistura do público — o impuro — com privado — o puro. Nos banheiros, onde não mais há tatame (a maioria das casas são forradas de tatame — o espaço puro é coberto com tatame, geralmente pisado com os pés, frequentemente usando meias), há sempre um par de chinelinhos disponíveis — mais uma vez, para que os pés descalços não encostem em um ambiente considerado impuro, e não leve impurezas para dentro da casa. Voltando à língua japonesa: observo que, ao interagir com pessoas que falam japonês e também inglês, há uma tendência a levar um tempo considerável para pedir algo simples, em um estabelecimento comercial, por exemplo. Durante essa interação, a linguagem corporal também se transforma; eles se reclinam muito, agem de forma envergonhada ou se portam de forma muito humilde, às vezes de maneira quase infantil. Isso acontece porque, ao pedir algo para o outro no Japão, não é adequado ser direto. Não existe uma simples pergunta como “Por acaso, você teria incenso de bambu?” (Já utilizando o “por acaso” e o “você teria” como formas delicadas de pedir algo. “Você tem incenso de bambu” seria uma ofensa!). No contexto japonês, é necessário construir uma introdução, agradecer por estar sendo atendido, elogiar o incenso, a loja, e só então, perguntar delicadamente sobre outros aromas de incenso, e finalmente, se teriam de bambu. Há de se construir todo um terreno seguro antes de formular uma pergunta ao outro. O outro não pode sentir de forma alguma que sua privacidade está sendo invadida. Isso, por um lado, está relacionado com a maneira de existir que separa profundamente o privado do público (é quase impossível para um japonês convidar convidar alguém para a sua casa), mas, por outro, cria um hiato, um espaço quase intransponível de relação ou comunhão (sinto que posso estar sendo extremamente leviana) entre as pessoas.

2. Outras observações

3. Sal na entrada das casas, em volta das portas.

4. Água é jogada na frente das casas e estabelecimentos para indicar que a casa está fresca e pronta para receber os visitantes.

5. Cerimônia budista que assisti. O que mais me impactou foi o fogo no centro e a intensidade com que o taikô foi tocado ao longo da cerimônia. Aquilo não foi uma performance, como Maciej me corrigiu; aquilo era uma cerimônia, aquilo é um ritual. Eles realizam aquela cerimônia todos os dias, quer haja gente lá ou não.

6. A névoa desempenha um papel crucial no Japão, seja na paisagem, nas residências ou nas relações. A luz indireta. A luz de tonalidade amarela. O papel arroz que permite apenas uma delicada passagem de luz. A atmosfera.

7. O interessante é que tudo isso possui dois lados. A névoa nas relações, na comunicação, a imprecisão da comunicação também faz com que as relações íntimas não sejam diretas e precisas. O homem não pode expor para uma mulher que a deseja — e vice versa. Para um homem beijar uma mulher (nunca o contrário), ele deve pedir permissão a ela.

8. Não é surpreendente a rapidez com que os japoneses se embriagam com uma quantidade mínima de álcool (em relação à nós). O álcool tem um efeito muito rápido sobre eles. É um desinibidor imediato dessas entraves todas. E eles gostam muito de álcool.

9. “Casas de mulheres”frequentadas por homens são bastante comuns. Não se tratam necessariamente de estabelecimentos de prostituição, mas locais onde os homens pagam para desfrutar da companhia de mulheres. Nessas casas ou bares, as mulheres são remuneradas para elogiar a beleza e inteligência dos homens, onde eles fantasiam ser desejados.

10. Calças que parecem saias utilizadas pelos samurais. Vestimenta que permitia que os samurais se aproximassem sem revelar os movimentos de suas pernas, possibilitando que dessem passos sem chamar a atenção de outros guerreiros.

11. O chá

12. O saque

13. As roupas usadas pelas japonesas no geral não marcam o corpo, não revela o corpo. A forma como se vestem aqui é muito interessante — as roupas são geralmente largas e elas experimentam muito com isso.

14. A relação da religião com o comércio. Em uma loja de departamentos de alto luxo, há uma escultura enorme de uma entidade budista com uma fênix e fogo, bem ao centro da loja.

15. A forma como Tokyo foi construída é totalmente relacionada com crenças religiosas. Os templos todos foram construídos ao redor da cidade para proteger a cidade das más energias.

16. Sugimoto e Tadao Ando. Penso que ambos esses artistas conseguiram

fazer a união entre a tradição e o mundo Ocidental.

17. Hokusai ou Hiroshige. 100 vistas de Edo (Tokyo — de Hiroshige) e 48 vistas do Monte Fuji (Hokusai).

18. Dicotomia entre o apreço do japonês pela natureza (wabi sabi) e, ao mesmo tempo, gostar de controlar a natureza — bonsai. O bonsai, se pensarmos bem, é uma forma de manipulação da natureza, é uma opressão da natureza a serviço de uma forma que interessa o ser humano. Quero refletir ainda sobre as ambiguidades dessa questão.

 

 

The Clay Dance

15062023

 

É interessante como não adianta imitar uma coreografia sem entender a serviço do que está cada movimento. Descobri isso com a cerâmica, com o torno especificamente. Assisti muitas pessoas trabalhando com o torno e sempre me encantei com a espécie de dança que acontecia entre a argila e as mãos, com a relação sensual das mãos com a massa, e com como a mão ia conduzindo a massa para o caminho de se transformar. Comecei a aprender esses dias, finalmente. Domingo tive minha primeira aula com a Timy. Ela me disse para prestar atenção no movimento de sua mão e repetir quando fosse a minha vez. Repeti, repeti muitas vezes, por horas no domingo, por mais horas na segunda, e mais horas na terça, e mais algumas horas na quarta. No total devo ter passado umas vinte horas imitando o movimento das mãos de Timy. Hoje concluí que não adianta imitar seus movimentos se não souber a serviço do que eles são. Hoje consegui centralizar minimamente a massa. Centralizar a massa significa deixá-la cilíndrica e com um giro homogêneo no torno, sem que tenha um lado com mais argila que o outro. Centralizar significa fazer com que ela gire no mesmo ritmo que o torno, literalmente. Quando não está centralizada, está em descompasso com o torno; quando está centralizada, ela e o torno são uma coisa só — mas para centralizar, eu e a massa, também temos que nos tornar uma coisa só. Não adianta eu querer centralizar; tenho que entender a pressão da minha mão, o ritmo do giro, a velocidade do giro, a velocidade com que subo a mão junto à massa, como eu faço ela descer em seguida, enfim, é muito difícil. Timy me explicou que um homem vai toda semana ao atelier há anos só para centralizar a massa. É só isso que faz. Não tem interesse em começar a trabalhar com massas já centralizadas, preparadas por outrem para que ele possa já fazer objetos. Não. Esse senhor está interessado na relação entre ele e a terra, no erotismo, no momento em que ambos se tornam um. Claro que também adoraria chegar nesse ponto, mas tenho oito dias em Mashiko trabalhando com cerâmica, então confesso que vou pular alguns anos de relação para trabalhar outros dias nas massas já impecavelmente centralizadas.

A centralização é a primeira etapa, antes de qualquer outra no torno. Uma vez que finalmente entendi (entendi é muito, senti seria mais adequado) a função do movimento, percebi que minha mão começou a inventar sozinha o próprio movimento dela para suprir tal função. Assim, na diferença dos meus movimentos para aqueles que fui instruída a copiar, estou enfim imitando Timy, imitando não sua dança, mas seu ritmo. Me arrisco a dizer que cada ceramista tem uma dança própria, mas provavelmente todos têm o mesmo ritmo.

Minha avó comentou comigo um dia desses como achava “sensual” o torno. A cerâmica realmente é muito erótica; é totalmente sobre relações, a relação da mão com a massa de argila, com a pressão dos dedos, com como você implica a ação e como você a cessa — até hoje, minhas peças estavam quebrando, e Timy me explicou que era porque eu estava tirando a mão muito rápido. Explicou que eu teria que tirar a mão da argila com delicadeza, “the clay responds to your actions, it has memory.” Realmente, entendo mais sobre erotismo com o torno, com a cerâmica, ao descobrir que não pode existir a Anna e a argila. Para a coisa acontecer, ambas têm que se tornar uma só; de repente, a argila passa a ser a Anna e vice versa, não tem mais mais dois, é um diálogo tão profundo que se torna um monólogo daquela mídia.

Essa experiência do torno está sendo muito profunda; é um aprendizado de calma e resiliência para começar a construir destreza nas mãos. Ou ainda, construir destreza na relação das mãos com o posicionamento do corpo, a postura, a inclinação do tronco, com a força aplicada no pedal do torno, com a entrada das mãos na massa, com a saída das mãos na massa; é, de novo, um abandono da vontade a serviço da construção de um conhecimento do gesto. A mão começa a ter uma inteligência própria. A mão passa a ter um conhecimento próprio, passa-se a criar um conhecimento no intervalo da mão, da terra e do pé no pedal. E da calma. É tudo menos algo mental. É um conhecimento totalmente da relação; nasce um conhecimento a partir do momento que começa a haver relação. Antes disso, é só desejo, é só vontade. Perguntei à Timy, depois de uma terça feira longa de trabalho e muita frustração, qual era o segredo.

“Practice is the secret”. Achei tão profunda essa resposta. Praticar é o segredo porque é um segredo que a argila irá contar para as mãos que estão mexendo nela. A cada tentativa, ela vai contando, e a mão vai ouvindo, até que uma hora, ambas iniciam um diálogo. Eu ainda não iniciei um diálogo, estou ainda na fase de praticar, praticar e praticar… A Timy riu da minha arrogante frustração um determinado momento e me explicou que só depois de três anos praticando que pegou o jeito em centralizar a massa. Três anos.

Sinto que sou um pouco como a argila nessa viagem. A cada dia, sinto estar sendo moldada por uma mão invisível, uma mão que também sou eu, mas um eu maior que mim que tem determinado minhas decisões e passos. Não sei mais se sou eu que estou seguindo, caminhando; sinto que só estou escutando algo me indicando o caminho. Cada dia, cada decisão, cada ação, cada fala, desafio, relação, nos molda, esculpe-nos para sermos o que somos. Ainda que não perceba de imediato, já não sou a mesma pessoa de um mês atrás. Estou tomando uma forma diferente, descobrindo uma forma de mim que antes me era desconhecida. Para onde estou indo? É essa mesmo a pergunta?

Jantar tradicional japonês, em Mashiko

16062023

 

Uma família de quatro pessoas: um casal e duas meninas. Estimo que a mais jovem deva ter 4 anos, e a mais velha parece contar seis ou sete. Observo o fascínio com que a mais velha observa a mesa com os alimentos e o fogo que aquece os potes. A mais nova segura os palitos sozinha, sentada em sua cadeira sem que os pés alcancem o chão. Ela se serve e come sem a ajuda da mãe. Antes de começar a refeição, a mãe levanta-se para prender seu cabelo em um rabo de cavalo. Trata-se de uma família jovem. O pai é silencioso. Destaca-se pela sua altura elevado e magreza. Seu rosto é comprido com bochechas salientes. Seu cabelo liso tem a franja repartida de maneira despojada ao meio, caindo para os lados. A menina de seis anos tem o cabelo liso, escuro e comprido com uma franja jogada para o lado. A mãe, de costas para mim, veste uma calça de moletom azul escura e uma camiseta da mesma cor. Seu cabelo está preso em um rabo de cavalo. Ambas as meninas vestem kimono, e o pai usa shorts de sarja e camiseta, ambos de uma cor curiosa, um verde musgo meio marrom meio cinza. As pessoas simples vivem muito bem no Japão. Se vestem bem, são discretas. Li que a forma sóbria e discreta das pessoas se vestirem no Japão remonta à estética criada pelo chá, pela antiga relação criada pelos mestres do chá.

A menina de seis anos brinca com sua sandália com os pés sob a mesa, enquanto a mais nova mantém a pontinha dos pés para cima, prevenindo que seu chinelo caia no chão.

Os japoneses gostam muito de frutas, tratando-as com grande respeito. Produzem-nas de maneira impecável, como jóias, e por isso elas custam muito caro. As frutas são consideradas como doces para eles. Na sobremesa, uma fatia com três gomos de melão. Um melão com a casca verde e a carne laranja, muito doce. É uma verdadeira especiaria. Junto com o melão, um pequeno quadradinho de um bolo de rolo de matcha com recheio de creme, uma delícia.

Um garotinho lá pelos seus quatro anos corre animadamente, brincando com uma borboleta amarela nas encostas da montanha. Sua mãe me dirige um olhar e irrompe em risadas, arrancando de mim uma risada espontânea. O dia agora está claro, com nuvens que agora dissipadas revelam um céu azul. O calor é imenso. O mar reluz em uma dança cintilante. A grama, verde exuberante, é salpicada por pequenas flores brancas.

Texto do dia 30 de dezembro de 2018

Laranjeiras

 

Fiquei pensando hoje sobre o que de fato seria a minha natureza, o que mesmo eu vim fazer nesse mundo? Por que mesmo nasci nessa família? O que é meu, que é só meu?

Fui à praia bem cedo na manhã, ela ainda estava vazia, e com isso a sua conotação “turística” era quase nenhuma, muito pelo contrário, vi a praia como se eu fosse uma estrangeira na terra, fiquei absolutamente maravilhada. Fui então lentamente me aproximando do mar, desse organismo tão estranho, tão desconhecido – apesar de lidarmos com ele de forma tão corriqueira -, e ele me chamou para entrar. Fiquei um tempo boiando olhando para o céu, este que também me recebeu radiante, limpo, sem nenhuma nuvem sequer filtrando o sol. E bem em cima de mim estava a lua, na metade, me senti saudada por ela, como quem vai sempre ao mesmo café e tem lá aquela mesma pessoa que te serve e te vê, e sabe seu nome, e repara seus gestos, e já te viu chorando, já sorriu para você até que um dia você finalmente olha de fato para aquela pessoa e a percebe. Hoje senti que foi essa a minha relação com a lua, onde ela sempre está lá me servindo e só hoje olhei para ela e a percebi.

Ao percebê-la, me dei conta que o meu desejo não tem nada a ver com “entrar para a história da arte”, ou “ser uma grande artista”, “ser uma grande artista mulher brasileira”. Não é e nunca foi isso o que realmente quis. E a verdade é que de algum modo eu sempre soube que não era isso, sempre soube que havia qualquer coisa de errado na construção lógica ou temporal dessa frase. Quem sabe seja até por isso que até hoje eu sentia algo levemente errado com a minha relação com a minha produção plástica propriamente. Sempre senti uma pulga atrás da orelha, como se estivesse faltando alguma peça nessa equação.

Bingo!

A lua me soprou a resposta: o que desejo mesmo, do fundo da minha alma, o que é meu e só meu é a necessidade vital por ser um ser humano melhor, é o desejo profundo por não viver essa vida em vão, o desejo de não me relacionar com meu corpo somente como um instrumento de sobrevivência, ao invés do meu precioso tesouro que possuo, ao invés da chave do meu próprio tesouro mais precioso; o que desejo nessa vida é fazer as minhas passagens, é enfrentar a carência, enfrentar o sintoma de cara limpa.

O objeto de arte, evidentemente, entra aí como um artifício, como um instrumento, uma ferramenta que age a favor dessa construção, uma arma importantíssima dessa batalha. Acho que esse é o significado do objeto para um “jovem artista”, se puder chamá-lo como tal. O objeto é um possível caminho para um desvio do sintoma, um deslocamento da carência, ele tem que ser como um lugar da manobra, o espaço do “gato”, como Rubens por tanto tempo investigou, a produção para um jovem tem que ser o gato, e por isso, obviamente, tem que ter calor, tem que ter tesão, libido, tem que ter vínculo real, tem que ter urgência para existir; é necessário que a produção se torne uma questão de vida ou morte, só aí ela estará enfim instaurada no espaço do “gato”.

Há, porém, após o gato, um outro espaço, um espaço muito mais profundo: o “pós-gato”. (Indagação: Quem sabe, provavelmente algumas culturas “primitivas” devem partir do espaço do “pós-gato”, isto é, já partem de um espaço deslocado, por isso que se torna tão difícil para enxergarmos de fato sua produção, pois já partem de um espaço, de uma sintaxe, de uma linguagem que configura-se em um espaço completamente distinto que o nosso, ocidentais.)

O artista mesmo, ou o sobrevivente, como quis Warburg, é esse que atravessa o espaço do gato, é esse que faz a manobra do sintoma e imerge no espaço do pós gato. De tanto trabalho de deslocamento do sintoma, uma hora o sintoma vira, e ele se torna a própria coisa do trabalho, o sintoma se torna a própria pulsão do trabalho, o sintoma passa por uma transfusão genética. Uma hora, toda potência mística, toda potência da trieb do sintoma se torna a própria luz que irradia do objeto, e assim faz com que o objeto possua sua própria vida, possua seu próprio sintoma que é justamente o que o mantém vivo, é o que o mantém respirando, é o que faz dele um sobrevivente, é o que faz dele demoníaco, obra do daimon, pois é assim justamente uma obra então do sinthoma, uma obra daquilo que sustenta o próprio ser (indagação: se para Lacan, o sinthoma é o que sustenta a vida, então o sinthoma é também a própria pulsão de vida, faz parte da genética da faísca que nos mantém vivos) – impossível aqui não pensar nas pinturas negras de Goya que ilustram isso imediatamente, tanto enquanto conteúdo, assim quanto forma. São obras do sintoma em redenção, do sintoma fora de uma sintaxe, do sintoma podendo finalmente falar outra língua. E a forma da gramática do sintoma ocidental é altamente poderosa, por isso que são poucos os que conseguem fazer a manobra, e para aqueles que conseguem, para aqueles que conseguem cruzar o oceano do sintoma, enfrentar os ciclopes da carência é enfim chegarem na ilha do sinthoma vivos, resta-lhes a eternidade, a sobrevivência, a nachleben, a “história”.

Acredito que de tanto se relacionar com o objeto, de tanto pedir algo para ele diariamente, de tanto trocar com ele, ouvi-lo, falar com ele, entender o que ele quer, entender o que se quer dele, um dia finalmente o objeto responderá. E quando o objeto de fato enfim responder (e isso pode levar uma vida inteira), sua relação com o objeto pode passar a ser de pura gratidão. Artistas como RES, Agnes Martin, Cy Twombly, por exemplo, chegaram em um nível de produção de si mesmo, junto com o objeto plástico, que a maturidade plástica, a relação deles nessa maturidade é de pura gratidão – e assim podemos chamá-los de “espirituais”. É um lugar de produção ou de relação com o fazer onde eles não pedem mais nada para o trabalho, não esperam mais nada do trabalho, simplesmente agradecem. O ato de fazer se torna assim um ato de agradecer. Eis o lugar do sinthoma.

E é isso o que eu desejo – desejo encontrar o sintoma em outra forma dele, com outra cara, cara a cara comigo. Desejo atravessar a minha sintaxe sintomática e me encontrar no avesso de mim.

Desejo um dia poder servir a lua de volta.

É isso o que vim fazer nessa vida.

Vivo para a construção de um corpo que um dia saberá agradecer.

 

Meditações

Retiro espiritual de Anna Israel
Santo Antônio do Pinhal – Pico Agudo
10 / nov / 2018
 
Quando escrevo para a tragédia, (o que não controlo controlando em mim – descontrole controlado) não estou comunicando nada, mas quando escrevo para o inalcançável em mim estou diretamente entrando nessa passagem que lentamente vou descobrindo ser eu. Escrever desta maneira ou tendo o foco no sem lei, acabo por poder enfim navegar no meu próprio sangue. Antes eu achava que queria assim, provar algo sobre mim para mim mesma, ainda que fora de mim, sabia que existia um alvo – certamente poderia fazer sentido no começo. Queria muito dizer quem era eu, que eu era íntima da tragédia que me perseguia, que eu era a mulher em carne viva, ferida aberta em que o destino jogava álcool puro. Eu sempre soube qual era meu álcool puro, sei, hoje, muito bem qual é meu combustível. Certamente eu tentei dizer isto. Mas hoje, uma vez que eu e a tragédia somos um, o que entendo sobre isso é que, ao dizer algo nestas condições suspensas de lei humana, o agente desse dizer se inventa imediatamente, se altera completamente, aquele que nela diz a tragédia só pode hoje ser uma mulher “intransitiva“, isto é, em conexão direta com aquilo que em mim queima, portanto: mulher em relação divina — mulher em espaço inviolável. A existência da tragédia – do Armagedom íntimo – é hoje inseparável dessa mulher, ela serve à tragédia, e assim ela se inventa imediatamente em mim, e eu me invento violentamente para o mundo – sou para a tragédia. Mas ainda não é isso – não fui precisa.O próprio sagrado vive dentro de mim. Dizer o sagrado dentro da minha intimidade é minha vocação, ainda que eu esperneie de medo. Dizer a neblina do topo da montanha é na verdade ser portadora da sua voz através do meu corpo – da nossa voz que sai de mim. 

Te invoco minha criatura redentora para poder adentrar a minha solidão.
 
Te invoco em meus textos para poder estar comigo. Te invoco antes de dormir para me proteger dos fantasmas. Você se invoca imediatamente em meu corpo, de assalto, sem que eu ao menos perceba, quando estou diante de você, e assim me comovo – sempre você transborda as lágrimas de meus olhos de comoção por sentir você derrubando minha porta à distância.

 

A economia psíquica da vida

Anna Israel, 2 de outubro de 2018

 

  1. A vida tem uma economia psíquica própria
  2. A vida é uma entidade própria – o tempo é uma entidade viva, e assim, ele precisa de uma tecnologia específica, uma engenharia precisa para que algo possa ser articulado, para que não haja ruído nas decisões do arquiteto. As passagens, obviamente acontecem no interno do sujeito, e são dolorosas, extremamente dolorosas, a travessia de uma passagem é uma tempestade em alto mar, uma tempestade em um barquinho, com um único tripulante, ele se questiona o tempo todo se vai sobreviver, não arreda pé, leva muitos caldos, tenta diversas alternativas para que seu barquinho não afunde, e assim, finalmente, passada a tempestade, com barquinho todo fudido, com o tripulante cheio de cicatrizes, em carne viva, sangrando, goza em estar vivo e sobrevivente da tempestade em um mar  finalmente sereno, do outro lado da travessia – a negociação com os porteiros não é nada simples – Kafka foi um gênio – os porteiros te tiram tudo para ver até onde você aguenta, para te deixar calejado para poder assim entrar uma porta não somente para gozar desse novo espaço, mas para estar calejado para a próxima porta. O porteiro na verdade, apesar de terrível, apesar de ter me deixado quase maluca, quer me preparar, me calejar para o que vem depois. Quem sabe, passada essa dor, me sinto mais forte para enfrentar tempestades ainda mais agressivas – agora estou mais forte para não morrer na negociação com o próximo porteiro. A força do tripulante é extremamente necessária para que o mar possa enfim estar sereno. O que quero dizer com isso é que as passagens de um sujeito não são somente de um único indivíduo, não são somente internas, são passagem também externas. Uma passagem muito poderosa é vital para o próprio tempo. Sinto que os deuses do tempo, os deuses da nachleben de alguma forma me protegem, me dão forças, me sopram respostas necessárias para que algo possa ser de fato atravessado. Não para mim. Mas para algo muito maior do que eu. Para o funcionamento de uma engrenagem muito mais poderosa. As passagens de um sujeito são lubrificantes nas articulações da máquina da naschleben. Por isso, acredito que as passagens são uma troca poderosíssima entre as energias endossomáticas e exossomáticas. Uma passagem concluída é a comunhão feliz entre essas duas forças, é elas estarem ajustadas no interior da máquina do arquiteto.
  3. Quero agradecer profundamente todos os integrantes do Atelier do Centro – sinto que todos me emprestam um pouquinho da própria força do desejo para que coisas muito sérias sejam ajustadas.
  4. Rubens, obrigada por me proteger, obrigada por colocar tantas coisas em cheque em nome de coisas maiores que você. Estou a cada dia afinando minha audição, a cada dia estou aprendendo a te ouvir melhor. Isto é, ouvir não tem nada a ver com o que imaginamos ser ouvir, ouvir significa estar realmente entregue, ouvir significa estar disponível para que algo possa ser ouvido e compreendido, ouvir é deixar o próprio corpo ouvir e assim me dizer o que ouviu. Assim como o mestre se transfigura muitas vezes, o mestre coloca a própria posição de mestre em risco em nome do discurso, em nome da fala, da fala poderosa. O mestre empresta seu corpo para que algo fale por ele. O discípulo tem que estar disponível para ouvir. Hoje, eu posso finalmente, do mais profundo da minha alma, dizer que eu sou uma discípula. E dizer que Rubens é o meu mestre.
  5. Nessa passagem foi-se intensificado um elo. Um elo da origem da relação mestre-discípulo. Onde ambos se tornam uma coisa só, onde ambos dividem o mesmo tabuleiro do jogo, são um contexto interrompido por dois corpos. A verdadeira relação mestre-discípulo é o extremo do erotismo – é realmente uma transgressão do interdito do corpo.

 

Uma tarde no porto de Marmaris

Viagem Turquia # 4
30 de setembro de 2020
Anna Israel

 

Caminhando pela minúscula cidade Marmaris, na região popular e não turística dessa cidade turca portuária, encontrei um pequena loja que vendia produtos orgânicos de todo tipo. Entrei e perguntei se podia tirar uma foto, um velhinho que de início julguei como rabugento, me olhou e falou qualquer coisa em turco, não saiu de sua cadeira, mas por algum motivo senti uma espécie de receptividade em sua fala. Fiquei olhando os produtos e perguntei em um inglês com sotaque turco a função deles, ele só me respondeu em turco, fez comentários sobre os produtos que eu olhava, gesticulou a função do sabonete esfregando suas mãos pelo corpo e fazendo um som no final de muita satisfação, algo como “ahhhhh” e levantava os braços.

Lá haviam vários potes de mel, de diversas cores, e eu me lembrei que em toda ilha que paramos, há sempre muitas abelhas, e lembrei do filme documentário Honeyland – o que me fez entender que estou em uma região que tem muita abelha e muitos produtos da abelha. Junto com os potes de mel haviam outros potes, um em particular com uns sedimentos amarelos e um adesivo com um desenho de abelhinha nele. Perguntei o que era com meu inglês com sotaque, e ele respondeu, e dessa vez gesticulou que era para comer, levando sua mão até a boca e fazendo em seguida aquele mesmo som de satisfação, “ahhhh” levantando suas mãos. Eu continuei olhando o pote, e ele se levantou e veio até mim, abriu o pote, colocou em sua mão e comeu. Em seguida, pediu minha mão e me deu um pouco para comer. Caiu muito em minha mão, isso me deixou um pouco apreensiva. O sabor não era bom, certamente eu fiz uma cara feia enquanto mastigava, tentando disfarçar e ao mesmo tempo fazia um “sim” com a cabeça, como um modo de mostrar aprovação ao que ele tinha me dado. Enfim ele pronunciou uma palavra que eu entendi: pólen!

Selecionei outras coisas e depois levei até ele – e foi quando ele puxou um banquinho com uma pequena almofada já bem murcha em cima e me convidou para sentar dando dois tapinhas em cima da almofada. Fiquei lá sentada assistindo ele embalando cada um dos produtos. Embalou um por um, e enquanto embalava me contava alguma história em turco, muito interessado em me contar, olhava para mim enquanto falava – talvez estivesse falando sobre os produtos, sua loja, sua esposa, sobre suas dores, eu não sei. Só sei que eu respondia com alguns “ahhhhs” e “wow” e ele dava risada. Lá estava eu e o velhinho turco, por um tempo que realmente se suspendeu, sentados tendo uma conversa em uma língua que nem ele nem eu conhecemos, mas por algum motivo, a gente estava se entendendo.

Quando me levantei para ir embora, disse em turco obrigada, teşekkür , e ele mostrou enorme felicidade! Ele então pediu que eu esperasse, falando “sorry” em inglês (que significa na verdade “desculpe”) várias vezes e gesticulando que eu esperasse, até que ele pegou um pote super antigo com uma flor na frente e pediu que eu fizesse uma trouxinha com as mãos. Mais uma vez, ele antes, passou virou um líquido transparente em suas mãos e em seguida na minha, ambos esfregaram as mãos e em cheiramos o perfume forte de lavanda que vinha do líquido.

Me despedi, ele foi até a porta comigo, e quando saí da loja lá ele ficou. Depois vi que ele pegou sua cadeira e colocou na entrada da loja, se sentou e ficou vendo a rua.

Com essa história, me pergunto: o que mesmo estamos falando um com o outro? Qual o sentido de termos a mesma língua? De falarmos línguas supostamente as mesmas? Confesso que nesses dias todos no barco com a minha família, que supostamente fala a mesma língua que eu, não tive nenhuma conversa tão profunda como a conversa que tive com o velhinho turco. Falar é mesmo um dispositivo que pode ser usado de forma muito carente, como um entorpecente, que impede a gente de estar acordado, de acordar. O que é maravilhoso sobre não falar a mesma língua que outra pessoa, é que na verdade só o essencial será dito e compreendido: o que eu tenho que entender, meu corpo entenderá!

O que me fascina também com essa história e que resume a entrada nesse novo momento da minha vida é: como contar essa mesma história, mas com a língua que foi conversada entre eu e o velhinho turco? Como abandonar esse português que me foi ensinado para contar essa história, e transpor o tempo que se suspendeu enquanto nós conversávamos em sua loja de produtos artesanais turco? Ou ainda, talvez como fez a Virgínia Woolf em Mrs Dalloway, como entrar tão fundo no velhinho turco e na jovem brasileira comprando produtos artesanais em sua loja, de modo que o próprio português pode ser qualquer outra língua? Virgínia Woolf mergulhou muito fundo na história de seus personagens, mergulhou em suas memórias, em seu estado de espírito, suas angústias, aquelas coisinhas suscetíveis às falas dos outros; ela virou o ser humano do avesso ! E claro que pra isso ela mesma se colocou em seu próprio avesso. Por isso entendo que esse momento que se inaugura não se trata de encontrar uma nova forma de escrever, mas o de inventar uma nova forma de ser – me colocar ainda mais no meu próprio avesso para que essa forma já obsoleta seja descartável para mim mesma, para que junto desse novo corpo, uma nova fala, um nova escrita, uma nova aula, uma nova plasticidade de mim se forme.

 

Ela levou 16 facadas no rosto na frente das filhas: Inquérito sobre a primeira facada

Poema em 3 atos
Anna Israel
30 de dezembro 2020

 

O que é poesia ?

O que é fazer poesia ?

O que será fazer poesia para além da poesia ? Mas que para além é esse ? Como assim “poesia para além da poesia”?

Se há uma “para além de” algo então não me parece haver o algo. O algo tem que ser capaz de se sustentar por ele mesmo. A poesia não precisa de um “para além dela” para ser poesia ! Por pode precisar !

Não parece haver poesia coisa nenhuma !

Não se faz poesia , se faz vida, se faz calor, se faz erotismo, sedução, gozo, entrelaçamento, transa, volição, entrega, conversão , se faz vontade de estar vivo, de inventar saídas de ar … o nome poesia é só o nome que damos a essa qualquer outra coisa que se faz quando não está se fazendo alguma coisa que já tenha um nome. Existir no não-nomeação, viver fora do nome, eis aqui o que me parece ser poesia , eis a ficção : viver fora do nome é enfim poder ficcionar um nome , um código nominal que não é nominável , é inominável, e por isso damos a ele o nome de poesia , mas poesia é um nome que sem a coisa que a antecede , não diz nada. É uma palavra sem nome – portanto só a carcassa de um corpo sem alma. Corpo sem alma também me parece querer dizer: um corpo sem calor , um corpo frio , um corpo desapaixonado de si mesmo . E esquentar um corpo não é fácil , da mesma maneira que não é fácil esquentar a relação com o que gostaria de dizer aqui – mas o que gostaria de dizer aqui, na verdade não tem a ver com o aqui , com o texto , com as palavras , mas tem a ver com escrever-me de volta para dentro de mim, tem a ver com acionar as chamas do meu próprio corpo : eis o que gostaria de dizer aqui. Portanto esse dizer não se trata de um dizer comunicativo , não se trata de um dizer no texto, mas o texto é que irá dizer em mim. Este texto na verdade é um pedido, um suplício para que eu volte a dizer-me em mim. E para isso, preciso dar algo em troca para o porteiro do texto, e essa coisa é o próprio texto.

Portanto o aqui por ora, esse texto , essa escrita , é uma tentativa não de gerar calor na escrita ! Que erro o meu querer pensar deste modo, esse modo é totalmente predatório ! O que eu quero aqui mesmo, o texto em questão , é um dispositivo da chave do disjuntor do meu próprio calor ! Acionar o texto significa na verdade acionar o motor de mim mesma . Aquecer minha engrenagem . Não deixar a máquina parar de rodar. E quando digo não deixar a máquina parar de rodar, não estou me referindo a uma morte literal , mas estou me referindo a não me deixar tornar-me uma carcassa da minha própria palavra sem vida, sem alma, sem ânimo, sem paixão , sem tesao , sem amor , morna , amordaçada ; deixar a máquina parar de rodar significa me deixar cair no estado de ser uma palavra sem nome, um estado de ser uma palavra que não diz nada, uma palavra sem contexto , e o meu contexto é justamente o meu calor ! É no meu calor, na minha efervescência que encontro meu contexto, meu texto que me antecede , e que precisa desse texto aqui para poder existir para fora de mim , e desta maneira construir minha morada do meu próprio contexto no mundo: fazer do meu calor, a minha morada.

 

Exposição de caligrafia no Centro Nacional de Arte

19072023

Hoje fui ver uma exposição que evidenciou para mim que não conhecemos o japonês, nem o Japão. A exposição gigante fica no primeiro andar do Museu Nacional de Arte e é inteira de caligrafia. São muitos rolos de papel abertos e emoldurados, contendo pequenos escritos que, confesso, não consegui decifrar. Somente mais tarde, ao perguntar a Keiko, a senhora que me hospeda em sua casa em Tokyo, entendi que o foco não era exatamente o conteúdo escrito, mas sim o gesto em si, a forma como a caligrafia foi executada. A exposição não é conceitual, mas totalmente formal — o que me faz entender ainda mais o formalismo de Judd, por exemplo, e sua relação com o Zen, com a aceitação do vazio, do silêncio, do nada. O que estava sendo apreciado era o gesto das pessoas que produziram o que estava sendo exposto. Nem consigo escrever direito de tão distante de mim que é isso. Ao mesmo tempo, não teria isso uma relação profunda com o que Gell chama de “índice”? A escrita, não era apenas uma expressão conceitual, mas sim um índice de um estado espiritual, uma manifestação profunda de meditação, um estado que o artista entra e, desta forma, registra esse estado na precisão de seu gesto. Assim, o que se apreciava, em última análise, não eram necessariamente as caligrafias em si, mas o que a forma delas era capaz de indicar sobre a pessoa que as fez. Isso leva a uma reflexão: as pessoas vão ver uma exposição de caligrafia, para ver estados meditativos, para ver a materialização de um nível elevado espiritual. Nesse caso, podemos falar que apreciar uma obra de arte ocidental, não foge muito disso, quando se considera o “deleite estético” em vez do “deleite visual”. Pra mim, estética está intrinsecamente relacionada a essa percepção. Estética é um índice de um nível elevado de dedicação a algo, é um indicativo de algo que foi feito com muita seriedade. Por isso, querendo ou não, somos capazes de perceber a estética em situações catastróficas, assim como em situações deslumbrantes. A estética é amoral.

Observando a exposição, notei pessoas tentando imitar o gesto com um pincel invisível na mão, e outras compartilhando entre si, também com pincéis imaginários, a forma como o traço foi feito. É importante considerar que, ao aprender a escrever em japonês, seja qualquer um dos três alfabetos, o kanji (que vem do chinês), o hiragana ou o katakana, também se aprende a fazer os caracteres, a ordem dos gestos — a linha principal e as seguintes; há todo um ritmo na forma de desenhar os caracteres que é crucial para a escrita. Alguns caracteres possuem traços curtos, indicando o caminho que a mão percorrerá para alcançar um ponto específico e, então, seguir para um traço mais longo. É como um percurso, uma rota da mão pelo papel, com um destino muito certeiro.

Embora eu não saiba apreciar essa característica formal da caligrafia, não consiga apreciar o que estou vendo, sou capaz de apreciar o que o que estou vendo representa do ponto de vista de quem está apreciando.

É impossível não pensar também no filósofo e matemático húngaro Lajos Szabo e em seu extenso trabalho de “caligrafia” no final de sua vida. Não eram exatamente caligrafias de letras, mas Szabó buscava “caligrafiar” o próprio espírito. Com esse objetivo, passou o final de sua vida “rabiscando” papéis com apenas um gesto rápido e veloz, criando um código do próprio gesto que, de alguma forma, incorporasse um sopro de seu próprio espírito , algo semelhante ao DNA.

Acredito que, no fundo, a obra de arte é isso. A produção em si acaba sendo isso. A questão é que grande parte da produção ainda se limita a ser um código apenas do sintoma, das nossas carências, insuficiências, desejos e vontades de dizer; grande parte da produção (não me restrinjo apenas à destinada a ser “de arte”), não deixa de ser um índice do que somos, um discurso, um DNA do nosso “estado de existência”. Por isso, inclusive, penso que o trabalho de Szabó, assim como a seriedade com que a caligrafia é tratada no Japão, é tão sofisticado. Pois não basta realizar um gesto para que ele seja “livre de expressão”, para que esse gesto não pertença mais ao sujeito. São anos de trabalho, milhões de folhas de papel ou horas de treino — não apenas o treino da mão, mas do corpo inteiro — para que, eventualmente, a coisa crie uma vida própria e se faça sozinha, se desvincule do criador. Quem sabe isso tenha relação com o Zen, que está ligado à caligrafia, que está relacionado ao que aquelas pessoas estavam apreciando: a coisa que se forma ao se ‘desformar’ de si.

 

Duas libélulas dançam
No espaço o vazio se faz presente A música da cachoeira.

 

Teshima Art Museum 24062023

Como é que uma pessoa conseguiu mobilizar tantas outras para construir um museu que está a serviço do vazio, um espaço que está a serviço do anti espetáculo, do anti entretenimento, um museu, ou um espaço que está a serviço de uma contemplação que imediatamente nos propulsiona para uma contemplação interna? Não é exatamente uma contemplação interna, é um estado muito profundo de gratidão por estar vivo, e isso é causado por um trabalho em conjunto tão singelo, feito pelos arquitetos Ryue Nishizawa e Rei Naito. Rei Naito conseguiu fazer um trabalho que é totalmente integrado ao espaço, de tal forma que arquiteto e artista se confundem e se fundem — ambos trabalharam profundamente para construir o que escapa nossos olhos mas toca um lugar muito profundo em nosso espírito.

 

“Is our existence on the Earth a blessing in itself?” Rei Naito

 

O museu expõe o nada, muito precisamente, assim como James Turrell deseja materializar a luz, eu diria que Naito e Nishizawa desejaram, juntos, materializar o nada, materializar uma atmosfera. É arrebatador. Não havia uma pessoa dentro daquela redoma/casulo que não foi impactada pelo trabalho, até mesmo as crianças se hipnotizavam. O mais bonito é que o impacto não é com uma enorme pintura, não é com uma escultura, um vídeo, ou qualquer ficção, o impacto é com o que existe, é com uma organização do vivo, da natureza, de forma que ela se torna a protagonista, o próprio ar é protagonista. Naito e Nishizawa criam uma moldura para o que já existe, permitindo-nos mergulhar no brilho do que é verdadeiro.

Ouvi dizer que o Teshima Art Museu não expunha “nada” necessariamente, somente a si mesmo. Mas discordo dessa visão. Pelo contrário, o museu expõe o espaço, o vazio, o museu é um convite para o silêncio.

Teshima Art Museum consegue fazer com que o sujeito realmente saia de um estado automático, e ao olhar para o trabalho, ao viver o trabalho, olhe para si mesmo, sinta a experiência de estar vivo e enfim sinta vontade de agradecer.