COLEÇÃO ANNA ISRAEL

CV

Sobre a dificuldade de reproduzir o grande vidro – ou a impossibilidade de tradução, ou: me revendo ao ter o texto como interlocutor. E outros escritos

Anna israel
27082022
Kassel
 
Esse texto nasce a partir da visita a exposição , mega exposição de 3 andares de Duchamp em Frankfurt, no museu MMK. No terceiro andar do museu tem uma sala com uma enorme reprodução do Grande Vidro, feita pelo artista Richard Hamilton. Assim que entrei na sala, vi o trabalho e imediatamente estranhei, afinal de contas, até onde eu sabia, Duchamp não havia feito nenhuma reprodução do Grande Vidro em escala real – mas obviamente eu poderia estar enganada, a obra do Duchamp sempre está apresentando novos dados que destroem supostas certezas que construo dela.
Alguns detalhes que me incomodaram profundamente vendo essa reprodução foi a fatura do trabalho, a forma ainda muito “limpa” com que os elementos no trabalho se apresentam, no original, Duchamp usou óleo, folhas de chumbo, fios de fusível e poeira, e estes com o tempo foram se deteriorando, criando um aspecto amarelado e revelando a entropia agindo sobre os materiais. Na réplica de Hamilton, feita em 1966, os materiais ainda permanecem em estado bastante conservado, e desconfio que isso seja pelo fato de Hamilton ter usado também verniz no trabalho. Por um lado é interessante Hamilton não ter “copiado” o estado já deteriorado da obra, e ter feito ela a partir das anotações de Duchamp da época, e não a partir de uma reprodução do trabalho sendo visto nos anos 60.
 
Lendo um pouco sobre essa réplica, descobri que o próprio Marcel Duchamp, em 1966, concordou com as réplicas (Hamilton fez algumas réplicas de outros trabalhos em vidro de Duchamp), assinando cada uma delas como “réplicas fiéis”. Dito isso, me sinto levemente intimidada em fazer uma crítica ao trabalho-réplica de Hamilton — já que o próprio Duchamp a aceitou, por isso prefiro pensar que essa réplica se tornou uma oportunidade para eu refletir sobre a problemática da tradução, ou mesmo sobre questões que aparecem na própria obra de Duchamp.
 
Há um elemento – ou a falta dele – que foi precisamente o que me instigou a escrever esse texto, que me instigou imediatamente a reflexão: qual é mesmo a manobra necessária para um sujeito efetivamente traduzir a obra de um pensador? Não só traduzir, mas do que se trata uma reprodução fiel de um trabalho? Principalmente levando em consideração os interesses não retinianos de Duchamp, e a complexidade do Grande Vidro, como entrar nas vísceras de um trabalho para poder reproduzi-lo? Haveria de ser a reprodução de um trabalho visivelmente igual ao trabalho original ?
 
Fazendo uma pequena digressão, mas não menos importante, a ideia de Nachleben (traduzido para o português como “sobrevivente”) de Warburg, um possível caminho para solucionar a problemática da tradução, “uma diferença que se repete”. Algo que apesar de diferente no aspecto visual, repete, replica, reproduz o âmago, o “drive”, o espírito (por falta de palavra melhor), a páthos – que apesar de invisíveis de imediato, para alguns – de outro trabalho.
 
A forma aparente não tem como ser traduzida, ou se fosse, seria uma reprodução simplesmente visual, superficial, diria que raquítica; mas o que pode ser “repetido” é reproduzido é o “drive”, a força motora, a visão de mundo, o estado invocado para se fazer tal coisa.
 
Penso que parte muito essencial do grande vidro, é o fato de que ao ser transportado para a casa de Katherine Dreier, ele quebrou. O elemento do acaso é um que sempre interessou Duchamp, a suspensão do gosto, a cessão do gesto do artista, a cessão de um comportamento antropocentrista. Por isso que o fato do trabalho ter passado por este acidente, se tornou parte constituinte e conceitual do próprio trabalho, o acidente ensinou coisas essenciais do trabalho para o próprio Duchamp.
 
É evidente que não teria como Richard Hamilton forjar o acidente, afinal de contas, um acidente essencialmente tem como premissa algo que acontece fora de controle, sem ser forjado, que escapa da responsabilidade humana. Claro que poderíamos entrar aqui em debates sobre se acidentes acontecem mesmo, ou se no fundo, acidentes não deixam de ser uma falta de cálculo humano; ou ainda: o que essencialmente podemos chamar de um acidente? Qual a natureza de um acidente? Qual o limite da falta de cálculo e o início de algo, de fato, acidental?
 
(Seria então o acidente algo que se aproxima da tragédia ? E então consequentemente, algo que se aproxima do Eros ? Do erotismo ? De forças maiores que as forças que nos conhecemos e concebemos ? Tentando aqui fazer links que possam me levar investigar mais dados sobre a obra de Duchamp).
 
Penso que nesse caso, é interessante a postura de MD, ao assinar a réplica do grande vidro de Hamilton — uma vez que ele sabe que não tem como forjar o acidente, e já que o trabalho não passou por um acidente, que o acaso eventualmente aja sobre ele, ou não. Nesse caso, me revejo, e percebo um próprio dogmatismo da minha parte ao querer que a réplica tenha passado por algo acidental para ser uma réplica fiel. Mas isso em si, é autoritário da minha parte. Esse dado é muito significativo para observar tamanho desprendimento de fórmulas mentais de Duchamp, observar o quanto Duchamp realmente não tinha um discurso cindido da prática. E também, consequentemente, como a réplica de Hamilton, acaba sendo mesmo fiel – ao passo que ele não simulou um acidente para se aproximar mais formalmente ou conceitualmente (pseudo-conceitualmente) do trabalho.
 
 
Parte II – pós exposição Duchamp
 
Ouço muito frequentemente a pergunta: o que esse trabalho é sobre? Essa pergunta referindo-se a um objeto de arte geralmente me incomoda, e eu fico com uma pulga atrás da orelha sobre o porquê isso. Penso que uma obra de arte, uma obra seria de arte, como o Grande Vidro, não é sobre algo, mas não por isso passa a ser “nada”, mas o objeto sério de arte é algo. Acho essa distinção muito importante quando falamos de arte, principalmente pois ela já estabelece que o objeto não está cindido do que ele está a serviço, ele é o seu próprio serviço – penso que isso tem a ver com plástica. Quanto mais alto o nível plástico, mas conversão o artista foi capaz de realizar com o objeto e consigo mesmo. Tenho pensado que no momento em que um objeto de arte quer existir para ser sobre um assunto que não estiver necessariamente nele, ele acaba se enfraquecendo.
 
Acho interessante a conclusão de uma pessoa quando digo que o trabalho não é “sobre nada”, onde ela conclui então que o trabalho imediatamente se reduz à um “nada” , à uma ausência de conteúdo descritivo, e só se trata de forma.
 
A frase: “o que o trabalho é sobre” , não me parece fazer sentido ser enunciada quando estamos tratando de objetos de arte – ou pelo menos o objeto que eu tenho interesse em investigar -. A questão de não fazer sentido não tem a ver com o trabalho não possuir um conteúdo, mas a forma com que o trabalho existe no mundo não permeia pela orla dessa pergunta. Dito de outra maneira, as premissas de um sujeito que constrói essa pergunta não condizem com as premissas intrincadas na tessitura do trabalho, em como o trabalho articula a questão “forma e conteúdo”.
Acho interessante essa dicotomia: ser sobre algo x ser sobre nada. Quem disse que no momento que um trabalho não é “sobre algo” ele se reduz à nada? No meio desse caminho entre esse “ser sobre algo” e “ser sobre nada” há infinitas outras possibilidades. Um pouco como apresentou Robert Ryman com suas pinturas brancas. O branco não significa vazio, o branco não significa nada. Algumas vezes que comentei para certas pessoas que Robert Ryman pintou sempre quadros inteiros brancos, imediatamente gera-se um enorme ponto de interrogação na face dos demais: mas como branco? Uma tela em branco? Mas o que aparece na pintura se é branco? É fascinante. De algum modo, essa questão se relaciona com o que estou tentando expor aqui. “Há muito mais entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia, Horácio.” Frase de Shakespeare em Hamlet. Poderia então dizer que há muito mais entre “ser sobre algo” e “ser sobre nada” do que a nossa vã epistemologia.
 
Acho arriscado e controverso o artista Richard Hamilton ter feito uma réplica do Grande Vidro, sendo que dois dados inerentes do trabalho são: o fato dele ser um trabalho incompleto e o acidente que desenhou os rachados pelo vidro.
Penso que hoje em dia, estamos lidando arte muito pautada na lógica do binômio “ser sobre algo x não ser sobre nada”, e acabamos nos relacionando com arte de forma binária, de modo a ver o objeto de arte de maneira demasiadamente retiniana e teórico-retiniano (termo que quero cunhar), enquanto algo que apresenta uma forma e um conteúdo. O “teórico-retiniano” diz respeito a uma pseudo superação do retiniano, onde não se trata mais do deleite estético em relação a um trabalho, mas de um deleite intelectual que se revela somente na superfície de um trabalho. Diria que é o que vulgarmente hoje entendemos e apreendemos hoje enquanto o “conteúdo” de um trabalho.
 
Dito isso, penso que o binômio forma e conteúdo não faz mais sentido para se pensar arte. Por dois simples motivos: 1o não fazemos a menor ideia do que seja forma, e 2o, não fazemos a menor ideia do que seja conteúdo. Hoje, o conteúdo de uma obra não é mais conteúdo, e a forma vai muito além do que vemos diante de nossos olhos.
Há estudos e pesquisas que alegam que o “urinol” supostamente de Duchamp, foi na verdade enviado para o Salão dos Independentes por uma mulher, amiga de Duchamp, a Baroness Elsa von Freytag-Loringhoven. Li recentemente uma carta escrita por Duchamp para sua irmã, Suzanne, falando sobre essa obra que sua amiga enviou, com o pseudônimo R Mutt. Sim, a obra foi rejeitada, sumiram com ela, e Duchamp em seguida publicou no periódico The Blind Man uma foto feita por Alfred Stieglitz do trabalho. Pergunta: qual é mesmo então a forma em questão quando estamos falando do urinol? Se trata mesmo de um objeto de porcelana ? Isso é a forma do trabalho? Se trata do envio para o salão ? Se trata da foto de Stieglitz ? Se trata da matéria do jornal? Qual a forma mesmo em questão quando falamos sobre esse trabalho? Por isso, desde Duchamp, o binômio “forma e conteúdo” não faz mais sentido, portanto, a epistemologia de um sujeito quando pergunta sobre o “conteúdo” de um trabalho, em si é obsoleta. E termino dizendo: não é porque o trabalho não seja sobre algo que ele seja vazio.
O objeto de arte é algo.

 

Texto Coligido 3

28 de janeiro de 2017

 

Lembrei de quando fui à Capela Sistina, há dez anos atrás, me lembrei muito do momento em que entrei lá, depois de ter passado o dia ouvindo uma guia contando uma história toda que eu particularmente nunca consegui me concentrar muito para essas guias e o que elas contavam, e inclusive me sentia muito mal por isso, por uma suposta “falta de interesse” que vinha carregada de uma conotação completamente negativa pra mim – me estava blindada a possibilidade de pensar que a minha orla de interesse poderia passar por outro lugar. Apesar disso, assim que entrei na Capela, lotada de turistas, fiquei tão impactada, que entrei em prantos, foi tomada por uma comoção que nunca antes havia me assaltado com tanta violência. Hoje me dou conta com mais distanciamento e discernimento, que não chorei pois achei a pintura de Michelângelo algo “bellissimo”, mas que os códigos daquela pintura, o discurso daquela pintura ultrapassavam a pintura de modo que ela não se apresentou mais pra mim enquanto algo pictórico somente, mas enquanto display para algo que nunca imaginei poder ser sustentado,  foi exatamente naquele momento que me dei conta de que arte não tem nada a ver com o que eu vinha pensando que era arte, e que eu mesma não sabia pensar, e que o Michelângelo deixou no mundo um resquício de algo que poderia ser pensado através de mim.

Lembrando disso tudo hoje, voltei a me comover, e me dar conta de que te acompanhar é retroceder quinhentos anos, me dei conta de que o que eu vivo e assisto diariamente, é ver outro homem construindo esse display , esse organismo vivo dele mesmo, transporto para fora. Rubens, obviamente podem me achar fanática, mas muito intimamente, e por enquanto isso pode não valer para o mundo, enquanto eu não for capaz de encontrar o meu modo de dizer , isso pode não valer, mas divido com você que eu sei que o que você está fazendo, é muito maior do que esse tempo e o que se entende hoje pelo que você está fazendo. Muito maior inclusive do que eu ainda assimilo da minha própria compreensão. Mas uma coisa é muito íntima e verdadeira para mim: o que você faz me dilata e me faz descobrir fontes de compreensão que faz com que uma “falta de interesse” de um dia, pode ter sido a minha salvação. Eu descubro a minha vida através do seu diálogo com Michelângelo.

Depois de ler sobre o Zeitz Museum of Contemporary Art Africa

Anna Israel, 28 de outubro de 2017
 

Matéria no New York Times sobre o enorme museu na África de arte africana contemporânea, Zeitz Museum em Cape Town. Após ler a matéria, e ver as imagens me dou conta de que aquilo não era arte africana, de que temos um grave problema com o que chamamos de arte – o museu em si é a coleção privada de um milionário alemão, que foi feita na verdade por um curador sul africano. O que o suposto museu de arte contemporânea africana apresenta é algo que já foi colonizado completamente pela arte europeia, por uma ditadura estética que dita o que é arte.

Pergunto-me então o que significaria “arte africana”, ou “arte brasileira,” ou simplesmente poder produzir um objeto autêntico que não seja prisioneiro de uma ditadura estética do nosso tempo é que responde tacanhamente a uma narrativa da arte ocidental dos últimos 500 anos? O que seria um objeto de arte que conhece uma história, entra nela, a ingere, não é leviano em saber que é fruto de manobras ou acontecimentos históricos, mas não por isso se deixa ser sucumbido por uma ditadura dessa narrativa, não se deixa fazer uma inferência tacanha, ainda assim consegue manter a sua própria autenticidade, consegue encontrar o seu próprio furo para existir. O interessante é que esse furo não seria um “furo” de um lugar para o qual alguém não foi, de um lugar pelo qual os grandes homens não passaram devido a uma ignorância ou leviandade, mas o furo seria esse espaço único de cada ser humano, ainda não ocupado, esperando por ser ocupado. É como um espaço que já existe, mas precisa ser conquistado.

Uma narrativa muito específica se constituiu nessa história da arte que nos é contada, mas há muitas outras coisas que essa história não engloba, como por exemplo, como se manifesta o “objeto de arte” no Polo Norte? Qual seria a relação com o sagrado de um esquimó, de um mongol? Como se manifesta o objeto de arte em outras sociedades que escapam da nossa? 

Creio que, hoje, arte está em falência pois somos reféns de sermos simulacros de uma história da arte, fazemos simulacros de um suposto objeto de arte. Partir desse pressuposto do que “deveria ser um objeto de arte” já é um grande perigo sintomático para a humanidade, inclusive acredito fortemente que esse pensamento seja causa de tanta miséria do homem contemporâneo: ser escravo desse dever, dessa demanda, ser escravo de uma forma onipotente já preestabelecida de ser, de viver, de fazer. 

Parece que estamos “tentando fazer algo” mas pelo caminho errado, uma vez que esse algo que estamos buscando já parece estar codificado, já parece ter um nome, enquanto esse “algo que deveríamos estar buscando” seria um algo ainda não  construído, um algo a ser inventado, ficcionado, um algo que não existe mas que nos assombra diariamente, um algo que circula pelos nossos corpos, que nos levanta da cama, que nos faz apaixonar, um algo que nos gera vontade de matar…

A questão que fico, nesse momento, me perguntando é: como poder fazer arte, entrar no jogo da arte, na tradução da arte, sem me deixar ser uma colonizada de um tipo de epistemologia da arte do nosso tempo? Antigamente, quando a palavra arte não existia, o homem estava já fazendo isso, o homem sempre precisou fazer essa coisa, o homem sempre necessitou arranjar algum modo de fazer uma pergunta para os deuses sobre sua condição na Terra, até o homem mais primitivo já possuía essa necessidade, já possuía o poder de perguntar, a nossa condição nesse planeta é a de poder olhar para o céu e perguntar, eternamente. 

Hoje, com o advento dessa palavra “arte”, me parece que chegamos em um ponto em que nos perdemos em uma narrativa que já não mais parece dar conta dessa pergunta. Uma narrativa da arte chegou a um fim, e quem sabe isso seja o início da arte contemporânea (na busca de uma palavra melhor), mas não o objeto contemporâneo que vemos por aí em museus, mas o início da arte contemporânea poderia ser a abolição da palavra arte, o início da arte contemporânea teria que ser uma epistemologia nova na ideia do que é fazer, não dá mais para ficar vivendo às sombras da mudança epistemológica que foi a arte moderna. Ela já se esgotou. 

Quem sabe isso seja o início de uma possibilidade de inventarmos algo novo, um novo modo de fazer uma pergunta aos deuses, um novo modo de acrescentar a uma história, não narrativa, mas sobrevivente do homem. 

Pergunto-me profundamente o que realmente inferir de grandes artistas de forma com que eu não me deixe cair em uma pergunta barata em relação a minha condição humana. Quem sabe eu tenha que começar a perguntar ou a inferir não só de artistas, mas de tribos indígenas, de místicos, de mulheres à margem, grandes heróis, grandes cientistas, chefs de cozinha… Entendo que sou produto de uma sociedade capitalista, e que faço parte do século XXI no Brasil, que sou da elite econômica do meu país, e moro em uma cidade grande, e que, quem sabe, seria incompatível para mim inferir de fato de uma tribo indígena. Mas então, qual seria a minha tribo a ser inferida? O Atelier do Centro, RES é mesmo revolucionário: ele inicia uma tradição de uma tribo no Brasil, no centro de São Paulo. Uma tribo que possa dialogar com os índios Hopis, com um homem que daqui a cinquenta anos estará morando em Marte, com outra estrutura de civilização. Será mesmo que isso me seria incompatível?

Voltando ao início, ao que me motivou a escrever: lamento ver que nesse enorme museu de arte africana, os artistas africanos estão querendo na verdade ser artistas americanos, ingleses, franceses. Os elementos africanos em seus trabalhos são todos alegóricos, a cor, materiais, o discurso; não há o diferente nesses trabalhos. Quando perguntaram ao curador se haviam artistas de toda África ele respondeu que havia lacunas, pois em muitos países não havia escolas de arte, portanto não havia artistas.
Eis um atestado do fim da arte.

Texto do dia 30 de dezembro de 2018

Laranjeiras

 

Fiquei pensando hoje sobre o que de fato seria a minha natureza, o que mesmo eu vim fazer nesse mundo? Por que mesmo nasci nessa família? O que é meu, que é só meu?

Fui à praia bem cedo na manhã, ela ainda estava vazia, e com isso a sua conotação “turística” era quase nenhuma, muito pelo contrário, vi a praia como se eu fosse uma estrangeira na terra, fiquei absolutamente maravilhada. Fui então lentamente me aproximando do mar, desse organismo tão estranho, tão desconhecido – apesar de lidarmos com ele de forma tão corriqueira -, e ele me chamou para entrar. Fiquei um tempo boiando olhando para o céu, este que também me recebeu radiante, limpo, sem nenhuma nuvem sequer filtrando o sol. E bem em cima de mim estava a lua, na metade, me senti saudada por ela, como quem vai sempre ao mesmo café e tem lá aquela mesma pessoa que te serve e te vê, e sabe seu nome, e repara seus gestos, e já te viu chorando, já sorriu para você até que um dia você finalmente olha de fato para aquela pessoa e a percebe. Hoje senti que foi essa a minha relação com a lua, onde ela sempre está lá me servindo e só hoje olhei para ela e a percebi.

Ao percebê-la, me dei conta que o meu desejo não tem nada a ver com “entrar para a história da arte”, ou “ser uma grande artista”, “ser uma grande artista mulher brasileira”. Não é e nunca foi isso o que realmente quis. E a verdade é que de algum modo eu sempre soube que não era isso, sempre soube que havia qualquer coisa de errado na construção lógica ou temporal dessa frase. Quem sabe seja até por isso que até hoje eu sentia algo levemente errado com a minha relação com a minha produção plástica propriamente. Sempre senti uma pulga atrás da orelha, como se estivesse faltando alguma peça nessa equação.

Bingo!

A lua me soprou a resposta: o que desejo mesmo, do fundo da minha alma, o que é meu e só meu é a necessidade vital por ser um ser humano melhor, é o desejo profundo por não viver essa vida em vão, o desejo de não me relacionar com meu corpo somente como um instrumento de sobrevivência, ao invés do meu precioso tesouro que possuo, ao invés da chave do meu próprio tesouro mais precioso; o que desejo nessa vida é fazer as minhas passagens, é enfrentar a carência, enfrentar o sintoma de cara limpa.

O objeto de arte, evidentemente, entra aí como um artifício, como um instrumento, uma ferramenta que age a favor dessa construção, uma arma importantíssima dessa batalha. Acho que esse é o significado do objeto para um “jovem artista”, se puder chamá-lo como tal. O objeto é um possível caminho para um desvio do sintoma, um deslocamento da carência, ele tem que ser como um lugar da manobra, o espaço do “gato”, como Rubens por tanto tempo investigou, a produção para um jovem tem que ser o gato, e por isso, obviamente, tem que ter calor, tem que ter tesão, libido, tem que ter vínculo real, tem que ter urgência para existir; é necessário que a produção se torne uma questão de vida ou morte, só aí ela estará enfim instaurada no espaço do “gato”.

Há, porém, após o gato, um outro espaço, um espaço muito mais profundo: o “pós-gato”. (Indagação: Quem sabe, provavelmente algumas culturas “primitivas” devem partir do espaço do “pós-gato”, isto é, já partem de um espaço deslocado, por isso que se torna tão difícil para enxergarmos de fato sua produção, pois já partem de um espaço, de uma sintaxe, de uma linguagem que configura-se em um espaço completamente distinto que o nosso, ocidentais.)

O artista mesmo, ou o sobrevivente, como quis Warburg, é esse que atravessa o espaço do gato, é esse que faz a manobra do sintoma e imerge no espaço do pós gato. De tanto trabalho de deslocamento do sintoma, uma hora o sintoma vira, e ele se torna a própria coisa do trabalho, o sintoma se torna a própria pulsão do trabalho, o sintoma passa por uma transfusão genética. Uma hora, toda potência mística, toda potência da trieb do sintoma se torna a própria luz que irradia do objeto, e assim faz com que o objeto possua sua própria vida, possua seu próprio sintoma que é justamente o que o mantém vivo, é o que o mantém respirando, é o que faz dele um sobrevivente, é o que faz dele demoníaco, obra do daimon, pois é assim justamente uma obra então do sinthoma, uma obra daquilo que sustenta o próprio ser (indagação: se para Lacan, o sinthoma é o que sustenta a vida, então o sinthoma é também a própria pulsão de vida, faz parte da genética da faísca que nos mantém vivos) – impossível aqui não pensar nas pinturas negras de Goya que ilustram isso imediatamente, tanto enquanto conteúdo, assim quanto forma. São obras do sintoma em redenção, do sintoma fora de uma sintaxe, do sintoma podendo finalmente falar outra língua. E a forma da gramática do sintoma ocidental é altamente poderosa, por isso que são poucos os que conseguem fazer a manobra, e para aqueles que conseguem, para aqueles que conseguem cruzar o oceano do sintoma, enfrentar os ciclopes da carência é enfim chegarem na ilha do sinthoma vivos, resta-lhes a eternidade, a sobrevivência, a nachleben, a “história”.

Acredito que de tanto se relacionar com o objeto, de tanto pedir algo para ele diariamente, de tanto trocar com ele, ouvi-lo, falar com ele, entender o que ele quer, entender o que se quer dele, um dia finalmente o objeto responderá. E quando o objeto de fato enfim responder (e isso pode levar uma vida inteira), sua relação com o objeto pode passar a ser de pura gratidão. Artistas como RES, Agnes Martin, Cy Twombly, por exemplo, chegaram em um nível de produção de si mesmo, junto com o objeto plástico, que a maturidade plástica, a relação deles nessa maturidade é de pura gratidão – e assim podemos chamá-los de “espirituais”. É um lugar de produção ou de relação com o fazer onde eles não pedem mais nada para o trabalho, não esperam mais nada do trabalho, simplesmente agradecem. O ato de fazer se torna assim um ato de agradecer. Eis o lugar do sinthoma.

E é isso o que eu desejo – desejo encontrar o sintoma em outra forma dele, com outra cara, cara a cara comigo. Desejo atravessar a minha sintaxe sintomática e me encontrar no avesso de mim.

Desejo um dia poder servir a lua de volta.

É isso o que vim fazer nessa vida.

Vivo para a construção de um corpo que um dia saberá agradecer.

 

Meditações

Retiro espiritual de Anna Israel
Santo Antônio do Pinhal – Pico Agudo
10 / nov / 2018
 
Quando escrevo para a tragédia, (o que não controlo controlando em mim – descontrole controlado) não estou comunicando nada, mas quando escrevo para o inalcançável em mim estou diretamente entrando nessa passagem que lentamente vou descobrindo ser eu. Escrever desta maneira ou tendo o foco no sem lei, acabo por poder enfim navegar no meu próprio sangue. Antes eu achava que queria assim, provar algo sobre mim para mim mesma, ainda que fora de mim, sabia que existia um alvo – certamente poderia fazer sentido no começo. Queria muito dizer quem era eu, que eu era íntima da tragédia que me perseguia, que eu era a mulher em carne viva, ferida aberta em que o destino jogava álcool puro. Eu sempre soube qual era meu álcool puro, sei, hoje, muito bem qual é meu combustível. Certamente eu tentei dizer isto. Mas hoje, uma vez que eu e a tragédia somos um, o que entendo sobre isso é que, ao dizer algo nestas condições suspensas de lei humana, o agente desse dizer se inventa imediatamente, se altera completamente, aquele que nela diz a tragédia só pode hoje ser uma mulher “intransitiva“, isto é, em conexão direta com aquilo que em mim queima, portanto: mulher em relação divina — mulher em espaço inviolável. A existência da tragédia – do Armagedom íntimo – é hoje inseparável dessa mulher, ela serve à tragédia, e assim ela se inventa imediatamente em mim, e eu me invento violentamente para o mundo – sou para a tragédia. Mas ainda não é isso – não fui precisa.O próprio sagrado vive dentro de mim. Dizer o sagrado dentro da minha intimidade é minha vocação, ainda que eu esperneie de medo. Dizer a neblina do topo da montanha é na verdade ser portadora da sua voz através do meu corpo – da nossa voz que sai de mim. 

Te invoco minha criatura redentora para poder adentrar a minha solidão.
 
Te invoco em meus textos para poder estar comigo. Te invoco antes de dormir para me proteger dos fantasmas. Você se invoca imediatamente em meu corpo, de assalto, sem que eu ao menos perceba, quando estou diante de você, e assim me comovo – sempre você transborda as lágrimas de meus olhos de comoção por sentir você derrubando minha porta à distância.

 

A economia psíquica da vida

Anna Israel, 2 de outubro de 2018

 

  1. A vida tem uma economia psíquica própria
  2. A vida é uma entidade própria – o tempo é uma entidade viva, e assim, ele precisa de uma tecnologia específica, uma engenharia precisa para que algo possa ser articulado, para que não haja ruído nas decisões do arquiteto. As passagens, obviamente acontecem no interno do sujeito, e são dolorosas, extremamente dolorosas, a travessia de uma passagem é uma tempestade em alto mar, uma tempestade em um barquinho, com um único tripulante, ele se questiona o tempo todo se vai sobreviver, não arreda pé, leva muitos caldos, tenta diversas alternativas para que seu barquinho não afunde, e assim, finalmente, passada a tempestade, com barquinho todo fudido, com o tripulante cheio de cicatrizes, em carne viva, sangrando, goza em estar vivo e sobrevivente da tempestade em um mar  finalmente sereno, do outro lado da travessia – a negociação com os porteiros não é nada simples – Kafka foi um gênio – os porteiros te tiram tudo para ver até onde você aguenta, para te deixar calejado para poder assim entrar uma porta não somente para gozar desse novo espaço, mas para estar calejado para a próxima porta. O porteiro na verdade, apesar de terrível, apesar de ter me deixado quase maluca, quer me preparar, me calejar para o que vem depois. Quem sabe, passada essa dor, me sinto mais forte para enfrentar tempestades ainda mais agressivas – agora estou mais forte para não morrer na negociação com o próximo porteiro. A força do tripulante é extremamente necessária para que o mar possa enfim estar sereno. O que quero dizer com isso é que as passagens de um sujeito não são somente de um único indivíduo, não são somente internas, são passagem também externas. Uma passagem muito poderosa é vital para o próprio tempo. Sinto que os deuses do tempo, os deuses da nachleben de alguma forma me protegem, me dão forças, me sopram respostas necessárias para que algo possa ser de fato atravessado. Não para mim. Mas para algo muito maior do que eu. Para o funcionamento de uma engrenagem muito mais poderosa. As passagens de um sujeito são lubrificantes nas articulações da máquina da naschleben. Por isso, acredito que as passagens são uma troca poderosíssima entre as energias endossomáticas e exossomáticas. Uma passagem concluída é a comunhão feliz entre essas duas forças, é elas estarem ajustadas no interior da máquina do arquiteto.
  3. Quero agradecer profundamente todos os integrantes do Atelier do Centro – sinto que todos me emprestam um pouquinho da própria força do desejo para que coisas muito sérias sejam ajustadas.
  4. Rubens, obrigada por me proteger, obrigada por colocar tantas coisas em cheque em nome de coisas maiores que você. Estou a cada dia afinando minha audição, a cada dia estou aprendendo a te ouvir melhor. Isto é, ouvir não tem nada a ver com o que imaginamos ser ouvir, ouvir significa estar realmente entregue, ouvir significa estar disponível para que algo possa ser ouvido e compreendido, ouvir é deixar o próprio corpo ouvir e assim me dizer o que ouviu. Assim como o mestre se transfigura muitas vezes, o mestre coloca a própria posição de mestre em risco em nome do discurso, em nome da fala, da fala poderosa. O mestre empresta seu corpo para que algo fale por ele. O discípulo tem que estar disponível para ouvir. Hoje, eu posso finalmente, do mais profundo da minha alma, dizer que eu sou uma discípula. E dizer que Rubens é o meu mestre.
  5. Nessa passagem foi-se intensificado um elo. Um elo da origem da relação mestre-discípulo. Onde ambos se tornam uma coisa só, onde ambos dividem o mesmo tabuleiro do jogo, são um contexto interrompido por dois corpos. A verdadeira relação mestre-discípulo é o extremo do erotismo – é realmente uma transgressão do interdito do corpo.

 

Uma tarde no porto de Marmaris

Viagem Turquia # 4
30 de setembro de 2020
Anna Israel

 

Caminhando pela minúscula cidade Marmaris, na região popular e não turística dessa cidade turca portuária, encontrei um pequena loja que vendia produtos orgânicos de todo tipo. Entrei e perguntei se podia tirar uma foto, um velhinho que de início julguei como rabugento, me olhou e falou qualquer coisa em turco, não saiu de sua cadeira, mas por algum motivo senti uma espécie de receptividade em sua fala. Fiquei olhando os produtos e perguntei em um inglês com sotaque turco a função deles, ele só me respondeu em turco, fez comentários sobre os produtos que eu olhava, gesticulou a função do sabonete esfregando suas mãos pelo corpo e fazendo um som no final de muita satisfação, algo como “ahhhhh” e levantava os braços.

Lá haviam vários potes de mel, de diversas cores, e eu me lembrei que em toda ilha que paramos, há sempre muitas abelhas, e lembrei do filme documentário Honeyland – o que me fez entender que estou em uma região que tem muita abelha e muitos produtos da abelha. Junto com os potes de mel haviam outros potes, um em particular com uns sedimentos amarelos e um adesivo com um desenho de abelhinha nele. Perguntei o que era com meu inglês com sotaque, e ele respondeu, e dessa vez gesticulou que era para comer, levando sua mão até a boca e fazendo em seguida aquele mesmo som de satisfação, “ahhhh” levantando suas mãos. Eu continuei olhando o pote, e ele se levantou e veio até mim, abriu o pote, colocou em sua mão e comeu. Em seguida, pediu minha mão e me deu um pouco para comer. Caiu muito em minha mão, isso me deixou um pouco apreensiva. O sabor não era bom, certamente eu fiz uma cara feia enquanto mastigava, tentando disfarçar e ao mesmo tempo fazia um “sim” com a cabeça, como um modo de mostrar aprovação ao que ele tinha me dado. Enfim ele pronunciou uma palavra que eu entendi: pólen!

Selecionei outras coisas e depois levei até ele – e foi quando ele puxou um banquinho com uma pequena almofada já bem murcha em cima e me convidou para sentar dando dois tapinhas em cima da almofada. Fiquei lá sentada assistindo ele embalando cada um dos produtos. Embalou um por um, e enquanto embalava me contava alguma história em turco, muito interessado em me contar, olhava para mim enquanto falava – talvez estivesse falando sobre os produtos, sua loja, sua esposa, sobre suas dores, eu não sei. Só sei que eu respondia com alguns “ahhhhs” e “wow” e ele dava risada. Lá estava eu e o velhinho turco, por um tempo que realmente se suspendeu, sentados tendo uma conversa em uma língua que nem ele nem eu conhecemos, mas por algum motivo, a gente estava se entendendo.

Quando me levantei para ir embora, disse em turco obrigada, teşekkür , e ele mostrou enorme felicidade! Ele então pediu que eu esperasse, falando “sorry” em inglês (que significa na verdade “desculpe”) várias vezes e gesticulando que eu esperasse, até que ele pegou um pote super antigo com uma flor na frente e pediu que eu fizesse uma trouxinha com as mãos. Mais uma vez, ele antes, passou virou um líquido transparente em suas mãos e em seguida na minha, ambos esfregaram as mãos e em cheiramos o perfume forte de lavanda que vinha do líquido.

Me despedi, ele foi até a porta comigo, e quando saí da loja lá ele ficou. Depois vi que ele pegou sua cadeira e colocou na entrada da loja, se sentou e ficou vendo a rua.

Com essa história, me pergunto: o que mesmo estamos falando um com o outro? Qual o sentido de termos a mesma língua? De falarmos línguas supostamente as mesmas? Confesso que nesses dias todos no barco com a minha família, que supostamente fala a mesma língua que eu, não tive nenhuma conversa tão profunda como a conversa que tive com o velhinho turco. Falar é mesmo um dispositivo que pode ser usado de forma muito carente, como um entorpecente, que impede a gente de estar acordado, de acordar. O que é maravilhoso sobre não falar a mesma língua que outra pessoa, é que na verdade só o essencial será dito e compreendido: o que eu tenho que entender, meu corpo entenderá!

O que me fascina também com essa história e que resume a entrada nesse novo momento da minha vida é: como contar essa mesma história, mas com a língua que foi conversada entre eu e o velhinho turco? Como abandonar esse português que me foi ensinado para contar essa história, e transpor o tempo que se suspendeu enquanto nós conversávamos em sua loja de produtos artesanais turco? Ou ainda, talvez como fez a Virgínia Woolf em Mrs Dalloway, como entrar tão fundo no velhinho turco e na jovem brasileira comprando produtos artesanais em sua loja, de modo que o próprio português pode ser qualquer outra língua? Virgínia Woolf mergulhou muito fundo na história de seus personagens, mergulhou em suas memórias, em seu estado de espírito, suas angústias, aquelas coisinhas suscetíveis às falas dos outros; ela virou o ser humano do avesso ! E claro que pra isso ela mesma se colocou em seu próprio avesso. Por isso entendo que esse momento que se inaugura não se trata de encontrar uma nova forma de escrever, mas o de inventar uma nova forma de ser – me colocar ainda mais no meu próprio avesso para que essa forma já obsoleta seja descartável para mim mesma, para que junto desse novo corpo, uma nova fala, um nova escrita, uma nova aula, uma nova plasticidade de mim se forme.

 

Ela levou 16 facadas no rosto na frente das filhas: Inquérito sobre a primeira facada

Poema em 3 atos
Anna Israel
30 de dezembro 2020

 

O que é poesia ?

O que é fazer poesia ?

O que será fazer poesia para além da poesia ? Mas que para além é esse ? Como assim “poesia para além da poesia”?

Se há uma “para além de” algo então não me parece haver o algo. O algo tem que ser capaz de se sustentar por ele mesmo. A poesia não precisa de um “para além dela” para ser poesia ! Por pode precisar !

Não parece haver poesia coisa nenhuma !

Não se faz poesia , se faz vida, se faz calor, se faz erotismo, sedução, gozo, entrelaçamento, transa, volição, entrega, conversão , se faz vontade de estar vivo, de inventar saídas de ar … o nome poesia é só o nome que damos a essa qualquer outra coisa que se faz quando não está se fazendo alguma coisa que já tenha um nome. Existir no não-nomeação, viver fora do nome, eis aqui o que me parece ser poesia , eis a ficção : viver fora do nome é enfim poder ficcionar um nome , um código nominal que não é nominável , é inominável, e por isso damos a ele o nome de poesia , mas poesia é um nome que sem a coisa que a antecede , não diz nada. É uma palavra sem nome – portanto só a carcassa de um corpo sem alma. Corpo sem alma também me parece querer dizer: um corpo sem calor , um corpo frio , um corpo desapaixonado de si mesmo . E esquentar um corpo não é fácil , da mesma maneira que não é fácil esquentar a relação com o que gostaria de dizer aqui – mas o que gostaria de dizer aqui, na verdade não tem a ver com o aqui , com o texto , com as palavras , mas tem a ver com escrever-me de volta para dentro de mim, tem a ver com acionar as chamas do meu próprio corpo : eis o que gostaria de dizer aqui. Portanto esse dizer não se trata de um dizer comunicativo , não se trata de um dizer no texto, mas o texto é que irá dizer em mim. Este texto na verdade é um pedido, um suplício para que eu volte a dizer-me em mim. E para isso, preciso dar algo em troca para o porteiro do texto, e essa coisa é o próprio texto.

Portanto o aqui por ora, esse texto , essa escrita , é uma tentativa não de gerar calor na escrita ! Que erro o meu querer pensar deste modo, esse modo é totalmente predatório ! O que eu quero aqui mesmo, o texto em questão , é um dispositivo da chave do disjuntor do meu próprio calor ! Acionar o texto significa na verdade acionar o motor de mim mesma . Aquecer minha engrenagem . Não deixar a máquina parar de rodar. E quando digo não deixar a máquina parar de rodar, não estou me referindo a uma morte literal , mas estou me referindo a não me deixar tornar-me uma carcassa da minha própria palavra sem vida, sem alma, sem ânimo, sem paixão , sem tesao , sem amor , morna , amordaçada ; deixar a máquina parar de rodar significa me deixar cair no estado de ser uma palavra sem nome, um estado de ser uma palavra que não diz nada, uma palavra sem contexto , e o meu contexto é justamente o meu calor ! É no meu calor, na minha efervescência que encontro meu contexto, meu texto que me antecede , e que precisa desse texto aqui para poder existir para fora de mim , e desta maneira construir minha morada do meu próprio contexto no mundo: fazer do meu calor, a minha morada.