Lembrei de quando fui à Capela Sistina, há dez anos atrás, me lembrei muito do momento em que entrei lá, depois de ter passado o dia ouvindo uma guia contando uma história toda que eu particularmente nunca consegui me concentrar muito para essas guias e o que elas contavam, e inclusive me sentia muito mal por isso, por uma suposta “falta de interesse” que vinha carregada de uma conotação completamente negativa pra mim – me estava blindada a possibilidade de pensar que a minha orla de interesse poderia passar por outro lugar. Apesar disso, assim que entrei na Capela, lotada de turistas, fiquei tão impactada, que entrei em prantos, foi tomada por uma comoção que nunca antes havia me assaltado com tanta violência. Hoje me dou conta com mais distanciamento e discernimento, que não chorei pois achei a pintura de Michelângelo algo “bellissimo”, mas que os códigos daquela pintura, o discurso daquela pintura ultrapassavam a pintura de modo que ela não se apresentou mais pra mim enquanto algo pictórico somente, mas enquanto display para algo que nunca imaginei poder ser sustentado, foi exatamente naquele momento que me dei conta de que arte não tem nada a ver com o que eu vinha pensando que era arte, e que eu mesma não sabia pensar, e que o Michelângelo deixou no mundo um resquício de algo que poderia ser pensado através de mim.
Lembrando disso tudo hoje, voltei a me comover, e me dar conta de que te acompanhar é retroceder quinhentos anos, me dei conta de que o que eu vivo e assisto diariamente, é ver outro homem construindo esse display , esse organismo vivo dele mesmo, transporto para fora. Rubens, obviamente podem me achar fanática, mas muito intimamente, e por enquanto isso pode não valer para o mundo, enquanto eu não for capaz de encontrar o meu modo de dizer , isso pode não valer, mas divido com você que eu sei que o que você está fazendo, é muito maior do que esse tempo e o que se entende hoje pelo que você está fazendo. Muito maior inclusive do que eu ainda assimilo da minha própria compreensão. Mas uma coisa é muito íntima e verdadeira para mim: o que você faz me dilata e me faz descobrir fontes de compreensão que faz com que uma “falta de interesse” de um dia, pode ter sido a minha salvação. Eu descubro a minha vida através do seu diálogo com Michelângelo.
Matéria no New York Times sobre o enorme museu na África de arte africana contemporânea, Zeitz Museum em Cape Town. Após ler a matéria, e ver as imagens me dou conta de que aquilo não era arte africana, de que temos um grave problema com o que chamamos de arte – o museu em si é a coleção privada de um milionário alemão, que foi feita na verdade por um curador sul africano. O que o suposto museu de arte contemporânea africana apresenta é algo que já foi colonizado completamente pela arte europeia, por uma ditadura estética que dita o que é arte.
Pergunto-me então o que significaria “arte africana”, ou “arte brasileira,” ou simplesmente poder produzir um objeto autêntico que não seja prisioneiro de uma ditadura estética do nosso tempo é que responde tacanhamente a uma narrativa da arte ocidental dos últimos 500 anos? O que seria um objeto de arte que conhece uma história, entra nela, a ingere, não é leviano em saber que é fruto de manobras ou acontecimentos históricos, mas não por isso se deixa ser sucumbido por uma ditadura dessa narrativa, não se deixa fazer uma inferência tacanha, ainda assim consegue manter a sua própria autenticidade, consegue encontrar o seu próprio furo para existir. O interessante é que esse furo não seria um “furo” de um lugar para o qual alguém não foi, de um lugar pelo qual os grandes homens não passaram devido a uma ignorância ou leviandade, mas o furo seria esse espaço único de cada ser humano, ainda não ocupado, esperando por ser ocupado. É como um espaço que já existe, mas precisa ser conquistado.
Uma narrativa muito específica se constituiu nessa história da arte que nos é contada, mas há muitas outras coisas que essa história não engloba, como por exemplo, como se manifesta o “objeto de arte” no Polo Norte? Qual seria a relação com o sagrado de um esquimó, de um mongol? Como se manifesta o objeto de arte em outras sociedades que escapam da nossa?
Creio que, hoje, arte está em falência pois somos reféns de sermos simulacros de uma história da arte, fazemos simulacros de um suposto objeto de arte. Partir desse pressuposto do que “deveria ser um objeto de arte” já é um grande perigo sintomático para a humanidade, inclusive acredito fortemente que esse pensamento seja causa de tanta miséria do homem contemporâneo: ser escravo desse dever, dessa demanda, ser escravo de uma forma onipotente já preestabelecida de ser, de viver, de fazer.
Parece que estamos “tentando fazer algo” mas pelo caminho errado, uma vez que esse algo que estamos buscando já parece estar codificado, já parece ter um nome, enquanto esse “algo que deveríamos estar buscando” seria um algo ainda não construído, um algo a ser inventado, ficcionado, um algo que não existe mas que nos assombra diariamente, um algo que circula pelos nossos corpos, que nos levanta da cama, que nos faz apaixonar, um algo que nos gera vontade de matar…
A questão que fico, nesse momento, me perguntando é: como poder fazer arte, entrar no jogo da arte, na tradução da arte, sem me deixar ser uma colonizada de um tipo de epistemologia da arte do nosso tempo? Antigamente, quando a palavra arte não existia, o homem estava já fazendo isso, o homem sempre precisou fazer essa coisa, o homem sempre necessitou arranjar algum modo de fazer uma pergunta para os deuses sobre sua condição na Terra, até o homem mais primitivo já possuía essa necessidade, já possuía o poder de perguntar, a nossa condição nesse planeta é a de poder olhar para o céu e perguntar, eternamente.
Hoje, com o advento dessa palavra “arte”, me parece que chegamos em um ponto em que nos perdemos em uma narrativa que já não mais parece dar conta dessa pergunta. Uma narrativa da arte chegou a um fim, e quem sabe isso seja o início da arte contemporânea (na busca de uma palavra melhor), mas não o objeto contemporâneo que vemos por aí em museus, mas o início da arte contemporânea poderia ser a abolição da palavra arte, o início da arte contemporânea teria que ser uma epistemologia nova na ideia do que é fazer, não dá mais para ficar vivendo às sombras da mudança epistemológica que foi a arte moderna. Ela já se esgotou.
Quem sabe isso seja o início de uma possibilidade de inventarmos algo novo, um novo modo de fazer uma pergunta aos deuses, um novo modo de acrescentar a uma história, não narrativa, mas sobrevivente do homem.
Pergunto-me profundamente o que realmente inferir de grandes artistas de forma com que eu não me deixe cair em uma pergunta barata em relação a minha condição humana. Quem sabe eu tenha que começar a perguntar ou a inferir não só de artistas, mas de tribos indígenas, de místicos, de mulheres à margem, grandes heróis, grandes cientistas, chefs de cozinha… Entendo que sou produto de uma sociedade capitalista, e que faço parte do século XXI no Brasil, que sou da elite econômica do meu país, e moro em uma cidade grande, e que, quem sabe, seria incompatível para mim inferir de fato de uma tribo indígena. Mas então, qual seria a minha tribo a ser inferida? O Atelier do Centro, RES é mesmo revolucionário: ele inicia uma tradição de uma tribo no Brasil, no centro de São Paulo. Uma tribo que possa dialogar com os índios Hopis, com um homem que daqui a cinquenta anos estará morando em Marte, com outra estrutura de civilização. Será mesmo que isso me seria incompatível?
Voltando ao início, ao que me motivou a escrever: lamento ver que nesse enorme museu de arte africana, os artistas africanos estão querendo na verdade ser artistas americanos, ingleses, franceses. Os elementos africanos em seus trabalhos são todos alegóricos, a cor, materiais, o discurso; não há o diferente nesses trabalhos. Quando perguntaram ao curador se haviam artistas de toda África ele respondeu que havia lacunas, pois em muitos países não havia escolas de arte, portanto não havia artistas.
Eis um atestado do fim da arte.
Fiquei pensando hoje sobre o que de fato seria a minha natureza, o que mesmo eu vim fazer nesse mundo? Por que mesmo nasci nessa família? O que é meu, que é só meu?
Fui à praia bem cedo na manhã, ela ainda estava vazia, e com isso a sua conotação “turística” era quase nenhuma, muito pelo contrário, vi a praia como se eu fosse uma estrangeira na terra, fiquei absolutamente maravilhada. Fui então lentamente me aproximando do mar, desse organismo tão estranho, tão desconhecido – apesar de lidarmos com ele de forma tão corriqueira -, e ele me chamou para entrar. Fiquei um tempo boiando olhando para o céu, este que também me recebeu radiante, limpo, sem nenhuma nuvem sequer filtrando o sol. E bem em cima de mim estava a lua, na metade, me senti saudada por ela, como quem vai sempre ao mesmo café e tem lá aquela mesma pessoa que te serve e te vê, e sabe seu nome, e repara seus gestos, e já te viu chorando, já sorriu para você até que um dia você finalmente olha de fato para aquela pessoa e a percebe. Hoje senti que foi essa a minha relação com a lua, onde ela sempre está lá me servindo e só hoje olhei para ela e a percebi.
Ao percebê-la, me dei conta que o meu desejo não tem nada a ver com “entrar para a história da arte”, ou “ser uma grande artista”, “ser uma grande artista mulher brasileira”. Não é e nunca foi isso o que realmente quis. E a verdade é que de algum modo eu sempre soube que não era isso, sempre soube que havia qualquer coisa de errado na construção lógica ou temporal dessa frase. Quem sabe seja até por isso que até hoje eu sentia algo levemente errado com a minha relação com a minha produção plástica propriamente. Sempre senti uma pulga atrás da orelha, como se estivesse faltando alguma peça nessa equação.
Bingo!
A lua me soprou a resposta: o que desejo mesmo, do fundo da minha alma, o que é meu e só meu é a necessidade vital por ser um ser humano melhor, é o desejo profundo por não viver essa vida em vão, o desejo de não me relacionar com meu corpo somente como um instrumento de sobrevivência, ao invés do meu precioso tesouro que possuo, ao invés da chave do meu próprio tesouro mais precioso; o que desejo nessa vida é fazer as minhas passagens, é enfrentar a carência, enfrentar o sintoma de cara limpa.
O objeto de arte, evidentemente, entra aí como um artifício, como um instrumento, uma ferramenta que age a favor dessa construção, uma arma importantíssima dessa batalha. Acho que esse é o significado do objeto para um “jovem artista”, se puder chamá-lo como tal. O objeto é um possível caminho para um desvio do sintoma, um deslocamento da carência, ele tem que ser como um lugar da manobra, o espaço do “gato”, como Rubens por tanto tempo investigou, a produção para um jovem tem que ser o gato, e por isso, obviamente, tem que ter calor, tem que ter tesão, libido, tem que ter vínculo real, tem que ter urgência para existir; é necessário que a produção se torne uma questão de vida ou morte, só aí ela estará enfim instaurada no espaço do “gato”.
Há, porém, após o gato, um outro espaço, um espaço muito mais profundo: o “pós-gato”. (Indagação: Quem sabe, provavelmente algumas culturas “primitivas” devem partir do espaço do “pós-gato”, isto é, já partem de um espaço deslocado, por isso que se torna tão difícil para enxergarmos de fato sua produção, pois já partem de um espaço, de uma sintaxe, de uma linguagem que configura-se em um espaço completamente distinto que o nosso, ocidentais.)
O artista mesmo, ou o sobrevivente, como quis Warburg, é esse que atravessa o espaço do gato, é esse que faz a manobra do sintoma e imerge no espaço do pós gato. De tanto trabalho de deslocamento do sintoma, uma hora o sintoma vira, e ele se torna a própria coisa do trabalho, o sintoma se torna a própria pulsão do trabalho, o sintoma passa por uma transfusão genética. Uma hora, toda potência mística, toda potência da trieb do sintoma se torna a própria luz que irradia do objeto, e assim faz com que o objeto possua sua própria vida, possua seu próprio sintoma que é justamente o que o mantém vivo, é o que o mantém respirando, é o que faz dele um sobrevivente, é o que faz dele demoníaco, obra do daimon, pois é assim justamente uma obra então do sinthoma, uma obra daquilo que sustenta o próprio ser (indagação: se para Lacan, o sinthoma é o que sustenta a vida, então o sinthoma é também a própria pulsão de vida, faz parte da genética da faísca que nos mantém vivos) – impossível aqui não pensar nas pinturas negras de Goya que ilustram isso imediatamente, tanto enquanto conteúdo, assim quanto forma. São obras do sintoma em redenção, do sintoma fora de uma sintaxe, do sintoma podendo finalmente falar outra língua. E a forma da gramática do sintoma ocidental é altamente poderosa, por isso que são poucos os que conseguem fazer a manobra, e para aqueles que conseguem, para aqueles que conseguem cruzar o oceano do sintoma, enfrentar os ciclopes da carência é enfim chegarem na ilha do sinthoma vivos, resta-lhes a eternidade, a sobrevivência, a nachleben, a “história”.
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Acredito que de tanto se relacionar com o objeto, de tanto pedir algo para ele diariamente, de tanto trocar com ele, ouvi-lo, falar com ele, entender o que ele quer, entender o que se quer dele, um dia finalmente o objeto responderá. E quando o objeto de fato enfim responder (e isso pode levar uma vida inteira), sua relação com o objeto pode passar a ser de pura gratidão. Artistas como RES, Agnes Martin, Cy Twombly, por exemplo, chegaram em um nível de produção de si mesmo, junto com o objeto plástico, que a maturidade plástica, a relação deles nessa maturidade é de pura gratidão – e assim podemos chamá-los de “espirituais”. É um lugar de produção ou de relação com o fazer onde eles não pedem mais nada para o trabalho, não esperam mais nada do trabalho, simplesmente agradecem. O ato de fazer se torna assim um ato de agradecer. Eis o lugar do sinthoma.
E é isso o que eu desejo – desejo encontrar o sintoma em outra forma dele, com outra cara, cara a cara comigo. Desejo atravessar a minha sintaxe sintomática e me encontrar no avesso de mim.
Desejo um dia poder servir a lua de volta.
É isso o que vim fazer nessa vida.
Vivo para a construção de um corpo que um dia saberá agradecer.
Caminhando pela minúscula cidade Marmaris, na região popular e não turística dessa cidade turca portuária, encontrei um pequena loja que vendia produtos orgânicos de todo tipo. Entrei e perguntei se podia tirar uma foto, um velhinho que de início julguei como rabugento, me olhou e falou qualquer coisa em turco, não saiu de sua cadeira, mas por algum motivo senti uma espécie de receptividade em sua fala. Fiquei olhando os produtos e perguntei em um inglês com sotaque turco a função deles, ele só me respondeu em turco, fez comentários sobre os produtos que eu olhava, gesticulou a função do sabonete esfregando suas mãos pelo corpo e fazendo um som no final de muita satisfação, algo como “ahhhhh” e levantava os braços.
Lá haviam vários potes de mel, de diversas cores, e eu me lembrei que em toda ilha que paramos, há sempre muitas abelhas, e lembrei do filme documentário Honeyland – o que me fez entender que estou em uma região que tem muita abelha e muitos produtos da abelha. Junto com os potes de mel haviam outros potes, um em particular com uns sedimentos amarelos e um adesivo com um desenho de abelhinha nele. Perguntei o que era com meu inglês com sotaque, e ele respondeu, e dessa vez gesticulou que era para comer, levando sua mão até a boca e fazendo em seguida aquele mesmo som de satisfação, “ahhhh” levantando suas mãos. Eu continuei olhando o pote, e ele se levantou e veio até mim, abriu o pote, colocou em sua mão e comeu. Em seguida, pediu minha mão e me deu um pouco para comer. Caiu muito em minha mão, isso me deixou um pouco apreensiva. O sabor não era bom, certamente eu fiz uma cara feia enquanto mastigava, tentando disfarçar e ao mesmo tempo fazia um “sim” com a cabeça, como um modo de mostrar aprovação ao que ele tinha me dado. Enfim ele pronunciou uma palavra que eu entendi: pólen!
Selecionei outras coisas e depois levei até ele – e foi quando ele puxou um banquinho com uma pequena almofada já bem murcha em cima e me convidou para sentar dando dois tapinhas em cima da almofada. Fiquei lá sentada assistindo ele embalando cada um dos produtos. Embalou um por um, e enquanto embalava me contava alguma história em turco, muito interessado em me contar, olhava para mim enquanto falava – talvez estivesse falando sobre os produtos, sua loja, sua esposa, sobre suas dores, eu não sei. Só sei que eu respondia com alguns “ahhhhs” e “wow” e ele dava risada. Lá estava eu e o velhinho turco, por um tempo que realmente se suspendeu, sentados tendo uma conversa em uma língua que nem ele nem eu conhecemos, mas por algum motivo, a gente estava se entendendo.
Quando me levantei para ir embora, disse em turco obrigada, teşekkür , e ele mostrou enorme felicidade! Ele então pediu que eu esperasse, falando “sorry” em inglês (que significa na verdade “desculpe”) várias vezes e gesticulando que eu esperasse, até que ele pegou um pote super antigo com uma flor na frente e pediu que eu fizesse uma trouxinha com as mãos. Mais uma vez, ele antes, passou virou um líquido transparente em suas mãos e em seguida na minha, ambos esfregaram as mãos e em cheiramos o perfume forte de lavanda que vinha do líquido.
Me despedi, ele foi até a porta comigo, e quando saí da loja lá ele ficou. Depois vi que ele pegou sua cadeira e colocou na entrada da loja, se sentou e ficou vendo a rua.
Com essa história, me pergunto: o que mesmo estamos falando um com o outro? Qual o sentido de termos a mesma língua? De falarmos línguas supostamente as mesmas? Confesso que nesses dias todos no barco com a minha família, que supostamente fala a mesma língua que eu, não tive nenhuma conversa tão profunda como a conversa que tive com o velhinho turco. Falar é mesmo um dispositivo que pode ser usado de forma muito carente, como um entorpecente, que impede a gente de estar acordado, de acordar. O que é maravilhoso sobre não falar a mesma língua que outra pessoa, é que na verdade só o essencial será dito e compreendido: o que eu tenho que entender, meu corpo entenderá!
O que me fascina também com essa história e que resume a entrada nesse novo momento da minha vida é: como contar essa mesma história, mas com a língua que foi conversada entre eu e o velhinho turco? Como abandonar esse português que me foi ensinado para contar essa história, e transpor o tempo que se suspendeu enquanto nós conversávamos em sua loja de produtos artesanais turco? Ou ainda, talvez como fez a Virgínia Woolf em Mrs Dalloway, como entrar tão fundo no velhinho turco e na jovem brasileira comprando produtos artesanais em sua loja, de modo que o próprio português pode ser qualquer outra língua? Virgínia Woolf mergulhou muito fundo na história de seus personagens, mergulhou em suas memórias, em seu estado de espírito, suas angústias, aquelas coisinhas suscetíveis às falas dos outros; ela virou o ser humano do avesso ! E claro que pra isso ela mesma se colocou em seu próprio avesso. Por isso entendo que esse momento que se inaugura não se trata de encontrar uma nova forma de escrever, mas o de inventar uma nova forma de ser – me colocar ainda mais no meu próprio avesso para que essa forma já obsoleta seja descartável para mim mesma, para que junto desse novo corpo, uma nova fala, um nova escrita, uma nova aula, uma nova plasticidade de mim se forme.
O que é poesia ?
O que é fazer poesia ?
O que será fazer poesia para além da poesia ? Mas que para além é esse ? Como assim “poesia para além da poesia”?
Se há uma “para além de” algo então não me parece haver o algo. O algo tem que ser capaz de se sustentar por ele mesmo. A poesia não precisa de um “para além dela” para ser poesia ! Por pode precisar !
Não parece haver poesia coisa nenhuma !
Não se faz poesia , se faz vida, se faz calor, se faz erotismo, sedução, gozo, entrelaçamento, transa, volição, entrega, conversão , se faz vontade de estar vivo, de inventar saídas de ar … o nome poesia é só o nome que damos a essa qualquer outra coisa que se faz quando não está se fazendo alguma coisa que já tenha um nome. Existir no não-nomeação, viver fora do nome, eis aqui o que me parece ser poesia , eis a ficção : viver fora do nome é enfim poder ficcionar um nome , um código nominal que não é nominável , é inominável, e por isso damos a ele o nome de poesia , mas poesia é um nome que sem a coisa que a antecede , não diz nada. É uma palavra sem nome – portanto só a carcassa de um corpo sem alma. Corpo sem alma também me parece querer dizer: um corpo sem calor , um corpo frio , um corpo desapaixonado de si mesmo . E esquentar um corpo não é fácil , da mesma maneira que não é fácil esquentar a relação com o que gostaria de dizer aqui – mas o que gostaria de dizer aqui, na verdade não tem a ver com o aqui , com o texto , com as palavras , mas tem a ver com escrever-me de volta para dentro de mim, tem a ver com acionar as chamas do meu próprio corpo : eis o que gostaria de dizer aqui. Portanto esse dizer não se trata de um dizer comunicativo , não se trata de um dizer no texto, mas o texto é que irá dizer em mim. Este texto na verdade é um pedido, um suplício para que eu volte a dizer-me em mim. E para isso, preciso dar algo em troca para o porteiro do texto, e essa coisa é o próprio texto.
Portanto o aqui por ora, esse texto , essa escrita , é uma tentativa não de gerar calor na escrita ! Que erro o meu querer pensar deste modo, esse modo é totalmente predatório ! O que eu quero aqui mesmo, o texto em questão , é um dispositivo da chave do disjuntor do meu próprio calor ! Acionar o texto significa na verdade acionar o motor de mim mesma . Aquecer minha engrenagem . Não deixar a máquina parar de rodar. E quando digo não deixar a máquina parar de rodar, não estou me referindo a uma morte literal , mas estou me referindo a não me deixar tornar-me uma carcassa da minha própria palavra sem vida, sem alma, sem ânimo, sem paixão , sem tesao , sem amor , morna , amordaçada ; deixar a máquina parar de rodar significa me deixar cair no estado de ser uma palavra sem nome, um estado de ser uma palavra que não diz nada, uma palavra sem contexto , e o meu contexto é justamente o meu calor ! É no meu calor, na minha efervescência que encontro meu contexto, meu texto que me antecede , e que precisa desse texto aqui para poder existir para fora de mim , e desta maneira construir minha morada do meu próprio contexto no mundo: fazer do meu calor, a minha morada.