COLEÇÃO ANNA ISRAEL

CV

Exposição de caligrafia no Centro Nacional de Arte

19072023

Hoje fui ver uma exposição que evidenciou para mim que não conhecemos o japonês, nem o Japão. A exposição gigante fica no primeiro andar do Museu Nacional de Arte e é inteira de caligrafia. São muitos rolos de papel abertos e emoldurados, contendo pequenos escritos que, confesso, não consegui decifrar. Somente mais tarde, ao perguntar a Keiko, a senhora que me hospeda em sua casa em Tokyo, entendi que o foco não era exatamente o conteúdo escrito, mas sim o gesto em si, a forma como a caligrafia foi executada. A exposição não é conceitual, mas totalmente formal — o que me faz entender ainda mais o formalismo de Judd, por exemplo, e sua relação com o Zen, com a aceitação do vazio, do silêncio, do nada. O que estava sendo apreciado era o gesto das pessoas que produziram o que estava sendo exposto. Nem consigo escrever direito de tão distante de mim que é isso. Ao mesmo tempo, não teria isso uma relação profunda com o que Gell chama de “índice”? A escrita, não era apenas uma expressão conceitual, mas sim um índice de um estado espiritual, uma manifestação profunda de meditação, um estado que o artista entra e, desta forma, registra esse estado na precisão de seu gesto. Assim, o que se apreciava, em última análise, não eram necessariamente as caligrafias em si, mas o que a forma delas era capaz de indicar sobre a pessoa que as fez. Isso leva a uma reflexão: as pessoas vão ver uma exposição de caligrafia, para ver estados meditativos, para ver a materialização de um nível elevado espiritual. Nesse caso, podemos falar que apreciar uma obra de arte ocidental, não foge muito disso, quando se considera o “deleite estético” em vez do “deleite visual”. Pra mim, estética está intrinsecamente relacionada a essa percepção. Estética é um índice de um nível elevado de dedicação a algo, é um indicativo de algo que foi feito com muita seriedade. Por isso, querendo ou não, somos capazes de perceber a estética em situações catastróficas, assim como em situações deslumbrantes. A estética é amoral.

Observando a exposição, notei pessoas tentando imitar o gesto com um pincel invisível na mão, e outras compartilhando entre si, também com pincéis imaginários, a forma como o traço foi feito. É importante considerar que, ao aprender a escrever em japonês, seja qualquer um dos três alfabetos, o kanji (que vem do chinês), o hiragana ou o katakana, também se aprende a fazer os caracteres, a ordem dos gestos — a linha principal e as seguintes; há todo um ritmo na forma de desenhar os caracteres que é crucial para a escrita. Alguns caracteres possuem traços curtos, indicando o caminho que a mão percorrerá para alcançar um ponto específico e, então, seguir para um traço mais longo. É como um percurso, uma rota da mão pelo papel, com um destino muito certeiro.

Embora eu não saiba apreciar essa característica formal da caligrafia, não consiga apreciar o que estou vendo, sou capaz de apreciar o que o que estou vendo representa do ponto de vista de quem está apreciando.

É impossível não pensar também no filósofo e matemático húngaro Lajos Szabo e em seu extenso trabalho de “caligrafia” no final de sua vida. Não eram exatamente caligrafias de letras, mas Szabó buscava “caligrafiar” o próprio espírito. Com esse objetivo, passou o final de sua vida “rabiscando” papéis com apenas um gesto rápido e veloz, criando um código do próprio gesto que, de alguma forma, incorporasse um sopro de seu próprio espírito , algo semelhante ao DNA.

Acredito que, no fundo, a obra de arte é isso. A produção em si acaba sendo isso. A questão é que grande parte da produção ainda se limita a ser um código apenas do sintoma, das nossas carências, insuficiências, desejos e vontades de dizer; grande parte da produção (não me restrinjo apenas à destinada a ser “de arte”), não deixa de ser um índice do que somos, um discurso, um DNA do nosso “estado de existência”. Por isso, inclusive, penso que o trabalho de Szabó, assim como a seriedade com que a caligrafia é tratada no Japão, é tão sofisticado. Pois não basta realizar um gesto para que ele seja “livre de expressão”, para que esse gesto não pertença mais ao sujeito. São anos de trabalho, milhões de folhas de papel ou horas de treino — não apenas o treino da mão, mas do corpo inteiro — para que, eventualmente, a coisa crie uma vida própria e se faça sozinha, se desvincule do criador. Quem sabe isso tenha relação com o Zen, que está ligado à caligrafia, que está relacionado ao que aquelas pessoas estavam apreciando: a coisa que se forma ao se ‘desformar’ de si.

PARTE I 

Este documento data a produção da Ana Mohallem entre os anos 2018 e 2021. Vou começar por um título dado pela própria Mohallem: 

Experiência de viagem como experiência estética.

Experiência: [na filosofia] Todo conhecimento adquirido através da utilização dos sentidos.

Viagem: 1. Ato de partir de um lugar para outro, relativamente distante, e o resultado desse ato.

Estética: 1. Com esse termo designa-se a ciência (filosófica) da arte e do belo. Belo: (nas palavras de Joseph Beuys) “O brilho do que é Verdadeiro”.

Escritos, coleções, escritório de arquitetura, produção plástica, traduções, compra como mídia, organização, ativação de espaços, assistências, leitura, biblioteca, estética expandida, reforma no espaço de produção, viagens expedições: diante desse documento da formação de uma jovem artista no CAC por 3 anos, evidencia-se uma questão que me parece eminente: do que mesmo se trata a formação de uma artista? O que está em jogo no enunciado do desejo por ser uma artista? O que mesmo a Mohallem está querendo construir na construção de cada um desses objetos? Que trabalho é esse que revela-se através de cada uma dessas páginas? Qual é a escultura da Mohallem que vaza de seus textos?, o texto que está sendo proferido em suas coleções?,o escritório de arquitetura em suas assistências? Do que se trata essa experiência de viagem como experiência estética? Há um trabalho que se apresenta neste documento que atravessa os objetos em si de cada página, fazendo com que o objeto em questão da formação de uma jovem artista não parece ter necessariamente a ver com o objeto físico, palpável, fotografado, emoldurado. Que objeto é esse então que quero aqui nomear? 

Voltando ao começo para subsidiar essa pergunta, esse documento foi feito sob orientação de RES, artista, pedagogo e pensador brasileiro. Do que mesmo se trata essa orientação a partir dos dados apresentados nesse documento? Relação de entrega, uma entrega a um caminho desconhecido de uma jovem de 29 anos que passou 9 anos trabalhando com propaganda de marcas como a Coca-Cola, Ford, Netflix, Samsung. Por que abdicar de um caminho tão seguro de trabalho e embarcar na experiência de uma viagem estética? Segundo Georges Bataille, o trabalho está associado ao mundo profano, enquanto a violência, ao sagrado. O que diferencia então o trabalho de propaganda para a Coca-Cola para o trabalho aqui apresentado? Penso que o grande divisor de águas desses dois trabalhos aqui se trata da relação mestre-discípulo, “relação tabu”, relação proibida, relação altamente violenta, já que esta tem por natureza a violação total de um trajeto de vida conhecida, esperada, segura, consumida, sobrevivida, controlada pela carência em querer sempre ter alguma resposta. A relação mestre-discípulo que faz essa divisão tem por natureza a lenta e trágica consciência da consumação inconsumável da vida; algo sempre vai nos escapar : o que está em jogo aqui não é o produto, não é o fim, mas o processo, o envolvimento, o calor, a tentativa e o erro, a resiliência em remar um barquinho mesmo sabendo que um dia ele irá afundar. O que está em jogo aqui é quanto a Mohallem irá conseguir suportar estar remando em alto mar de si mesma e construindo a cada dia mais dispositivos para poder continuar em sua tempestade. 

A seguir não temos um “grande trabalho feito por uma jovem artista”, mas um pequeno pontinho traçado em um mapa virgem de seu caminho desconhecido. 

 

PARTE II 

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. 

Clarice Lispector, em Mineirinho 

O Belo é o brilho do que é verdadeiro, Joseph Beuys 

Um dos grandes motivos pelo qual penso que produzimos poucas coisas no mundo é porque morremos de medo de ver nossas limitações e insuficiências – queremos constantemente pensar que somos suficientes, somos grandiosos, somos geniais. 

No fundo, acho que aquele quando diz que quer ser artista, está dizendo na verdade que não suporta mais viver na fantasia. A produção, o fazer, é o grande sacrifício de querer enfrentar de peito aberto as suas limitações, ver as insuficiências, os traumas, as projeções, as carências; entender sem fantasia o que cada um é mesmo capaz diante de cada contexto, e assim insistir. Insistir em nome de poder atravessar essas limitações menores, para quem sabe um dia, estar cara a cara com nossas limitações essenciais. 

Se fazemos pouco, penso que é porque temos medo, medo de enfrentar a dura e cruel realidade do que somos. Mas o que somos é o que temos, e esse é o único ponto de que podemos mesmo partir em busca dessa viagem estética pela vida. Fazer pode realmente ser um parto terrível, já que dilacera toda fantasia sobre si. Mas só com a fantasia dilacerada, é que se pode-se começar do lugar que realmente nos cabe, este é, o terreno. 

 

Gabi Celan – 2017

Por Anna Israel

“Sou responsável por meu dom. Minha comida é um dom, minha geleia com o chá é um dom, minha saúde, minha disposição (hoje sorrindo), o sol entrando pela sala é um dom, o telefonema do meu amigo é um dom, a satisfação de ter cumprido o dever; sua realização é um dom. Minha blusa azul cor do céu está limpa e é um dom, muito especialmente o tempo lá fora e a calefação são um dom, o estado do meu estômago, um dom das alturas, a presença dos meus amados.

Prepare-se para pagam por seus dons com arte.

Prepare-se para pagar suas dívidas com arte.

Você está sacrificando sua liberdade pela arte.”

Louise Bourgeois, 13 de outubro de 1997.

 

“O espírito efetua uma eterna autodemonstração.”

Novalis em Pólen.

 

Começar pelo minúsculo, pelo insignificante, o quase despercebido, por um gesto quase invisível que vejo como o tropeço do trabalho em direção a solidificação dos pactos, que propulsiona o primeiro gesto de contorção de uma bailarina em direção a conhecer as possibilidades de seu corpo, o primeiro movimento de um bebê que desperta nele nem que seja uma ínfima consciência de que ele está em vivo, de que seu choro pode despertar a atenção da mãe: uma pequena circunferência de ouro maciço, uma arruela minúscula de ouro maciço usada no suporte da Cesta Basica, aqui usada na tensão de uma madeira pintada de azul, velha, que tenciona o que chamamos de mantimentos “básicos” contra a parede: arroz, feijão, farinha de trigo e mandioca, óleo, café, açúcar, sal, macarrão, balas, um monitor de televisão antigo, uma cadeira, livros de arte, filosofia , literatura… do que se trata o básico? O que o mundo chama de básico e o que é mesmo o básico para um ser humano, subjetivamente, o que cada um necessita, para construir a sua própria base, sua estaca que finca os pés na terra? O “básico” de um país subdesenvolvido como o Brasil, é uma coisa, na Alemanha, já outra, e na Gabi, o que é? O que é essa cesta básica que Gabi está construindo para si, está construindo em si? Cesta básica me parece um amuleto, um escudo de Gabi para a imposição de um país, de uma classe média brasileira, uma demanda de uma classe média brasileira, onde assistir à novela da Globo é a nossa maior fonte de poesia. Um monitor de televisão captando rede nenhuma senão a sua própria rede, Gabi querendo captar em seu trabalho sua rede, seus sinais, sua emissão, sua implicação no mundo, no outro; esse monitor em latência de uma rede a ser captada, obsoleto, não mais útil para as exigências “básicas” de um país, sem antena, sem cor, sem dispersão, uma possibilidade para começar a transmutar, a contorcionar o que foi dito, imposto à ela do que deveria ser, do que deveria comer, ler, assistir, vestir, dizer, fazer, e assim retorno para a minúscula arruela de ouro silenciosa em um canto, inserida na cesta básica. Retorno para esse detalhe insignificante, para aquilo que transcende a pura e simples necessidade, ou será que essa peça insignificante não é mesmo o que deveríamos entender como nossa necessidade mais vital, uma peça tão pequena e inútil e preciosa, não seria ela o que realmente Gabi está resgatando para manter-se viva, manter-se viva ao contrário de simplesmente sobreviver? Parece-me que a Cesta Básica enseja dar início a uma fala, um gemido com sintaxe de Gabi, inicia a invenção de uma gramática disso que tanto se remexe dentro dela. 

Gabi inicia a construção de sua própria cesta básica, de uma cesta que levará consigo no içamento de quem é, se muni dos acessórios convencionais da classe média brasileira, de ser a menina de Pirituba, esposa de um gênio, bailarina, museóloga, aspirante a artista, discípula, filha de pais jovens, criada pelos avós, está em munição do terreno em que está circunscrita, do terreno dela mesma circunscrita, da capenguiçe do Brasil, do “gato”, da falta da alta tecnologia, de soluções para sobrevivência, do pequeno espaço de trabalho que possui no galpão, todos esses apontados para outro sitio, todos são o veneno de uma flecha apontada para uma carreira, para uma profissão em latência, uma profissão em invenção, uma profissão não ensinada nas universidades, que não está descrita nos livros de arte, de filosofia, de literatura, não está fazendo chamada no jornal para novos funcionários, ainda que a chamada esteja sendo feita dentro dela mesma, algo a chama para a destruição dessas paredes de alvenaria, algo a chama a remexer a estrutura das regras ditadas pelo Brasil, pelas regras de sua origem, de seus antepassados, algo a chama a remexer seu próprio mundo subjetivo, desconfia de si mesmo, é chamada a remexer sua fala, sua fala mexe e se remexe por esse pequeno espaço de trabalho no galpão, vai abrindo respiros pelas paredes, que obviamente são suas próprias paredes internas, suas rígidas paredes que aparentam ser somente placas de MDF, e aos poucos, transforma aquele espaço minúsculo em um espaço desejado, vai descobrindo seu corpo como espaço desejado por ela mesma na ânsia que tem em produzir, em vestir sua bota de couro grosso com sua saia plissada de bailarina, e com sua furadeira de alta tensão, cria amarrações pelo espaço, tensões no espaço, tensões nela mesma, cria problemas plásticos como armadilha para encontrar soluções éticas no pacto com ela mesma. Flecha apontada para aquela circunferência minúscula de ouro que tensiona os primeiros equipamentos de uma cesta básica em pé, firmes, em um começo de uma nova conjuntura, de um novo status de si.

Conseguir minimamente ver o trabalho, seria antes, ou concomitantemente, ver quem o fez, se existe algo diante de mim, e, se o pacto para existência desse texto existe, então é porque existe alguém por trás disso, alguém querendo algo, alguém fazendo, alguém caminhando ou engraxando os sapatos para uma caminhada longa, costurando com cabo de aço o couro de sua firme bota de trabalhador para adentrar a uma selva ainda inexplorada, uma selva que curiosamente parece-me que quanto mais adentramos, mais inexplorada ela se revela, e a latência insuportável de sua infinita inexplorabilidade se revela diante de nós. Nesse caso, essa selva, chama-se Gabi Celan, esse chamado, da selva, é disso que estamos hoje chamando de Gabi Celan, ainda que não saibamos ao certo o que ela é, quem ela é, o que vai fazer, o que está dizendo, hoje Gabi ouve os gritos distantes de uma mulher vinda de seu próprio futuro, e corre velozmente atrás dele, corre atrás desse grito, ainda que essa corrida exista justamente no que ela está conseguindo colocar para fora dela mesma, uma corrida circunscrita em uma arena de 16m2 do galpão da Rua Teodoro Baima. Quando mais gera movimento externo, mais passos internos, mais mobilidade de manobra gera-se em direção a esse urro, e assim, mais movimento externo, mais mobilidade externa também pode articular. É mesmo uma dança.

 

A Museóloga

Pilhas e pilhas de fichas catalográficas, materiais de precisão, um avental branco, luvas de algodão com as iniciais GC bordadas na beirada, os cabelos presos com um rabo baixo, um batom vermelho, sóbrio, seus óculos redondos e um espaço de trabalho onde se articula com imponência, de onde vem essa moça? Banco de dados, cai004, cai008, cai009… O que é a Museóloga? Gabi, está construindo uma organização do próprio espaço, do seu próprio espaço de ser bailarina, e peão de obra, de ser esposa e também discípula, museóloga e artista, de passar batom e usar calça de trabalhador, é aí onde está a museóloga, a museóloga está nesses arranjos, no modo como se arranja, coreografa novas disposições do próprio espaço escultórico de manobras de seu corpo. O espaço me parece ser um ponto alto propulsor da museóloga, bailarina, peã. Os três eminentemente interessados no espaço: a museóloga com o espaço de configuração das coisas, o espaço técnico, o espaço da previsão para o futuro, organiza os arranjos, que imediatamente se trança com a bailarina, que se arranja pelo espaço que tem, abre espaços fictícios de ação, que possibilita grandes manobras no seu pequeno espaço de trabalho, no espaço supostamente pequeno que é o seu corpo, rodopia pelo seu espaço e vai o transformando em uma dimensão inimaginável. E é claro, a peã quer ser o seu próprio instrumento para erguer esse grande espaço. Um pré-espaço, um pré-espaço-escultura de si mesma, um inicio de relação dela mesma em seu próprio espaço, uma descoberta do que é esse “ela mesma” e o que é esse “próprio espaço” – trabalha em uma maquete.

Seu trabalho claramente está a construindo, Gabi está arranjando um canal de construção através de seu trabalho, inventando um corpo para a fala engasgada, ainda que um balbucio, um balbucio do que quer ser dito já é muito mais valioso do que qualquer dizer que nada tem a dizer. Arranja-se em seu trabalho, constrói um arranjo para a fala que quer falar, para poder se calar, para poder finalmente estar calada. É um alívio poder estar calada sem estar em dívida com a fala, sem culpa, estar fazendo o que é possível ser feito no lugar de ser feito. Sente o alívio de poder calar-se, ainda que desconfiada, graças a Deus, de que a fala só está em exercício de dizer, de que o que temos aqui são os músculos se esquentando, as cordas vocais se esquentando, para o fatídico momento. Início da construção de uma dispositivo de conhecimento de si mesma, mesmo que ainda alienada de sua própria construção. Quem sabe, hoje a alienação possa estar a servindo de algo, essa alienação da qual estou falando, pode estar sendo útil, uma rede de proteção para não afundar, uma rede de proteção que a mantém fazendo; essa alienação hoje pode, a preservar de algo, a propulsionar a construção, mas acredito que o próximo passo, para vencer essa fase e poder saltar para a próxima, ou mesmo, dar continuidade ao trabalho, será quando ela estiver pronta a se des-alienar dessa construção que vem travando com ela mesma nesses últimos cinco anos. Pode nunca estar pronta, será uma aposta, o seu corpo vai saber quando ele mesmo estará pronto para bancar a aposta. Seu corpo estará pronto para proferir a sua nova pele, sua pele-calejada pela consciência de sua implicação com seu trabalho, isto é, sua implicação com si mesma. Por ora, pode servir, mas uma hora o trabalho vai lhe cobrar que lhe responsabilize por ele, e assuma para, antes de qualquer um, si mesma, que pode.

 

Esse inicio de construção de seu trabalho, desse trabalho de ser Gabi, não deixa de ser um inicio de reorganização do que ela mesma entende por organização, não deixa de manter uma ordem, não deixa que organizar, mas aqui, vejo um inicio de aprendizagem com outro tipo de organização, aprende como o próprio trabalho quer ser organizado, como uma Gabi que ela mesma desconhece, quer ser colocada para fora, um palco para a fala que não quer saber de uma gramática já manjada, ensinada no ensino médio medíocre da educação de um país subdesenvolvido que é o Brasil, quer criar novos instrumentos para a sua fala, não quer mais saber de como lhe foi ensinado conjugar os verbos, quer arrancar dentro de si mesma suas próprias vogais, as vigas estruturais da cesta básica de quem é. Madeiras velhas, soluções “feias”, incorretas, o uso de equipamentos de forma que causaria um espanto para a equipe técnica da fábrica de porcas e sua família, trabalha para deixar de ser certinha, para não falar certinho, para não ser limpinha, para não viver de conjugações de verbos e arroz, feijão e farinha de mandioca e uma bala halls. A classe media brasileira tem isso de querer falar correto, querer conjugar os verbos corretamente, de estar sempre limpo por fora, de criar um cenário artificial externo de que está “tudo bem”, de que as coisas estão sob controle, o sofá no lugar do sofá, a mesa de centro, as paredes bem pintadas, a geladeira abastecida para a semana, uma despensa, um filho, um animal de estimação, um nível básico de inglês, e alguns livros didáticos da faculdade de direito ou administração ou de empreendedorismo na estante… Gabi urge por suspender essas regras, quer falar tudo errado, quer a parede suja, quer martelar uma parede até que ela possa expor o que a sustenta, quer tirar uma sujeira de sua origem que foi toda arrastada para debaixo do tapete e usá-la como matéria prima dessa nova organização do espaço de si, na nova configuração de sua morada; não serão os verbos bem conjugados que a autorizarão a dizer, a existir, a encontrar esse nome, Gabi Celan.

 

 

Texto Coligido 3

28 de janeiro de 2017

 

Lembrei de quando fui à Capela Sistina, há dez anos atrás, me lembrei muito do momento em que entrei lá, depois de ter passado o dia ouvindo uma guia contando uma história toda que eu particularmente nunca consegui me concentrar muito para essas guias e o que elas contavam, e inclusive me sentia muito mal por isso, por uma suposta “falta de interesse” que vinha carregada de uma conotação completamente negativa pra mim – me estava blindada a possibilidade de pensar que a minha orla de interesse poderia passar por outro lugar. Apesar disso, assim que entrei na Capela, lotada de turistas, fiquei tão impactada, que entrei em prantos, foi tomada por uma comoção que nunca antes havia me assaltado com tanta violência. Hoje me dou conta com mais distanciamento e discernimento, que não chorei pois achei a pintura de Michelângelo algo “bellissimo”, mas que os códigos daquela pintura, o discurso daquela pintura ultrapassavam a pintura de modo que ela não se apresentou mais pra mim enquanto algo pictórico somente, mas enquanto display para algo que nunca imaginei poder ser sustentado,  foi exatamente naquele momento que me dei conta de que arte não tem nada a ver com o que eu vinha pensando que era arte, e que eu mesma não sabia pensar, e que o Michelângelo deixou no mundo um resquício de algo que poderia ser pensado através de mim.

Lembrando disso tudo hoje, voltei a me comover, e me dar conta de que te acompanhar é retroceder quinhentos anos, me dei conta de que o que eu vivo e assisto diariamente, é ver outro homem construindo esse display , esse organismo vivo dele mesmo, transporto para fora. Rubens, obviamente podem me achar fanática, mas muito intimamente, e por enquanto isso pode não valer para o mundo, enquanto eu não for capaz de encontrar o meu modo de dizer , isso pode não valer, mas divido com você que eu sei que o que você está fazendo, é muito maior do que esse tempo e o que se entende hoje pelo que você está fazendo. Muito maior inclusive do que eu ainda assimilo da minha própria compreensão. Mas uma coisa é muito íntima e verdadeira para mim: o que você faz me dilata e me faz descobrir fontes de compreensão que faz com que uma “falta de interesse” de um dia, pode ter sido a minha salvação. Eu descubro a minha vida através do seu diálogo com Michelângelo.

Relação plástico filosófica notada entre alguns desenhos de RES

Anna Israel
07082022
CAC
 

Vendo a obra do RES agora acabo de me dar conta da importância de ver arte e de como leva tempo para que as coisas se assimilem. Há uma impaciência da nossa parte em querer chegar a resultados rápidos, entender de imediato uma questão, sem ter a experiência prática do envolvimento com a própria questão. Tenho percebido, inclusive a partir da minha própria ansiedade, uma necessidade de controle e de “autonomia” do pensar e do fazer, sem levar em consideração que ambos “pensar” e “fazer” são entidades próprias, são mídias próprias, que vão criando robustez e destreza com a prática, com o exercício, com a experiência. Introduzo esse texto com essa questão, por ter recentemente vivido a experiência de ser pega pelo meu “pensamento pensando sozinho”, do pensamento agindo como mídia, ao passar um tempo observando alguns dos desenhos de RES, e de experimentar o deleite que é isso. De tanto me relacionar com sua obra, da experiência diária e obsessiva de investigar o que Rubens faz, uma hora, o pensamento naturalmente chega em conclusões por conta própria. Ao se permitir e se dispor a construir um envolvimento com algo que realmente se ama, aos poucos, aquilo começa a fazer parte integral de você; aos poucos, informações colhidas diariamente e armazenadas em um banco de dados mental se tornam subsídios para novas esferas de compreensões e conclusões impensáveis anteriormente. 

Isso me faz pensar numa história. Um belo dia, o físico alemão Max Planck estava caminhando com seu neto, provavelmente pelas ruas de Berlin, e ao subir no ônibus, com um pé ainda na calçada e o outro no degrau, teve uma epifania acerca da teoria que mais tarde teria sido batizada com o nome de “Constante de Planck”, fundamental para a teoria quântica surgida dez anos depois. Essa história descreve com precisão o que estou querendo introduzir aqui. A epifania foi possível, não porque recebeu uma mensagem “do além” sobre um assunto que não tinha sequer relação, mas possivelmente seu corpo foi capaz de ler um dado naquele momento que, por ter um enorme banco de dados mental, como um processo químico, assimilou um acontecimento, essa assimilação reagiu com outras informações armazenadas, e concluiu-se nisso que chamei de ‘epifania’. Podemos dizer que esse “banco de dados”, que é construído diariamente com a experiência e o envolvimento com o que se interessa, é indispensável para o desenvolvimento de uma gramática, ele é indispensável para o trabalho cada vez mais sofisticado de nosso aparelho cognitivo.

Em ocasião de um portfólio de RES que estou trabalhando, passei alguns dias revendo muitos de seus trabalhos, e percebi relações formais e filosóficas entre alguns desenhos que nunca antes havia me dado conta.

Vou começar pelos desenhos pequenos. Temos papeis medindo aproximadamente 4 x 4 cm, neles vemos imagens formadas por tipos de diferentes manchas, dá para perceber que as imagens não foram necessariamente construídas deliberadamente, digo, não são imagens em que o artista construiu como paisagens, não construiu essas imagens querendo representar paisagens – a escala do papel é muito pequena para a intensidade do gesto que está em cada um deles. Conclui-se então que são imagens formadas de outra maneira, onde uma “paisagem” apresenta-se nos minúsculos papéis. Há aqui um dado muito importante, a diferença de uma imagem que é representada na superfície do papel, e uma imagem que é apresentada na superfície do papel. Impossível não pensar em Cézanne com esse dado, quando abre mão das regras acadêmicas da arte de representar uma paisagem, e obsessivamente, insiste que sua pintura teria que apresentar a paisagem, e dessa forma inventou a sua própria maneira de pintar, inventou uma forma para que o acontecimento, o fenômeno que tinha diante de seus olhos, pudesse se fazer manifesto na própria pintura. 

No caso desses desenhos pequenos de RES, ele inicia seu processo com papéis geralmente de tamanho A4, com um arsenal de ferramentas restrito geralmente à um universo específico – tem sessões em que o “universo” escolhido é o pastel oleoso, grafite e lápis de cor, tem sessões em que o “universo” é a caneta bic geralmente da cor azul, algumas canetas com a tinta diluída em álcool, outras com sua ponta esferográfica, outras somente com o tubo de tinta retirado do invólucro de plástico, outras sessões o papel começa do tamanho 150 x 150, e ele inicia o processo desenhando coisas aleatórias ao seu redor, depois joga álcool e fogo no papel, até que o fogo faça seu trabalho queimando algumas partes, chamuscando outras, deixando faíscas pousarem em diversas direções; tem vezes que decide trabalhar com materiais que não tem relação nenhuma com o universo das “artes plásticas”, como cachaça, terra, sangue animal, café, restos de comida da geladeira, urina, cinzas de seu charuto… Uma vez que RES inicia uma sessão de desenho, qualquer coisa pode se tornar um dispositivo para o desenho. Gosto de chamar esse procedimento de RES de um esgotamento do gesto, onde aos poucos vai desfazendo-se das amarras convencionais que nos é imposta (de modo que o que vemos no papel é um grande caos, algo que a princípio poderíamos julgar como uma mixórdia), assim como vai esgotando as inúmeras possibilidades conhecidas do fazer linha, mancha, hachura, rabisco, observação, tensão, sutileza, violência, acaso, controle, descontrole – tudo isso sobre um papel extremamente resistente, constitutivo do desenho. 

O que acho interessante sobre esses procedimentos, é que oposto ao que uma pessoa comum poderia desejar, que é alcançar sua suficiência, ter destreza do que faz, estar apto a fazer o que faz, RES quer alcançar um estado de esgotamento de sua suficiência, quer alcançar o espaço em que ele não mais tem recursos, quer encontrar o espaço sem saída, para que seja obrigado a construir uma nova saída. Lembro aqui do filme Nikita, de Luc Besson. Uma aprendiz de espiã é colocada à prova pelos seus chefes quando, em uma missão, ao ter as coordenadas do que deve fazer, Nikita se encontra em um beco sem saída, se encontra em um corredor de tijolo onde não tem mais para onde correr, e seu oponente está indo atrás dela. Nessa situação, Nikita tem duas opções: ou entrega sua vida, ou tem que inventar uma solução nova para se manter viva, tem que inventar uma linguagem nova dentro da situação para se salvar. Em termos de procedimento, é muito parecido com o que é feito por RES. Se coloca em uma situação em que todos seus recursos já foram utilizados, esgota sua força, esgota sua disposição, esgota suas referências, para que uma força excedente, tenha que ser inventada para atravessar tal situação. Me fascina o pacto que faz com o desenho, o grau de envolvimento e comprometimento criado com um pedaço de papel, a ponto de, ao assistir a sessão, esquecer que se trata de um pedaço de papel, mas o pedaço de papel se transforma em um órgão vital de sobrevivência para sua própria espécie. Junto ao pedaço de papel, coloca-se em situação de guerra, ficciona uma batalha mitológica, para arranjar algum modo de sair incólume. 

Que quer dizer desenhar? Como se consegue desenhar? É a ação de abrir passagem através de um muro de ferro.

Vincent Van Gogh





Em seguida, temos o segundo ato da sessão. Geralmente, antes de começar, Rubens pede para seus assistentes limparem o ambiente – que está caótico –, de modo a transformá-lo em uma espécie de sala cirúrgica. A energia do espaço é outra. RES junta então todos os papéis sofridos pelo esgotamento do gesto, e diria que enfim começa mesmo a desenhar. O momento de desenhar propriamente, não é utilizado mais nenhum dos instrumentos de “aplicação” de materiais na superfície do papel, somente uma tesoura. Rubens junta todos os papéis em um grande bloco, determina um tamanho, algo como 10 x 10 cm, e aleatoriamente recorta todos juntos. Em seguida, olha um por um, meticulosamente, e inicia os procedimentos cirúrgicos, de recortar cada papel individualmente, em busca de fazer a paisagem escondida em cada um deles, aparecer, enfim se apresentar. 

RES lê o que foi feito, analisa cada papel minúsculo em busca das paisagens ‘escondidas’. Descarta muitos, mas segue buscando nessas imagens manifestas, o que sobra ou vaza das suas ações, o momento em que o esgotamento da suficiência, dos recursos, encontra o espaço onde a insuficiência desenha a sua própria falta, o seu próprio imponderável. Por isso, apesar de serem desenhos que podemos ver, diria que são desenhos da própria falta, são desenhos da própria vulnerabilidade, são desenho inclusive, do universo da mulher, do vazio, do que não se vê, do que não se apreende, do que não se pondera, mas não deixa de estar lá. O imponderável se faz presente através desses desenhos. 




Apesar de não ter percebido na época, noto hoje que há um procedimento filosófico muito parecido utilizado nos desenhos grandes, particularmente na série dos Barcos – apesar da escala e do resultado serem tão diferentes. 

Essa semelhança não está necessariamente na forma de execução do desenho, mas no modo como RES constrói um dispositivo para que o desenho “impossível” possa surgir. O que quero dizer com “desenho impossível”? Vou partir da ideia de um desenho possível. Um desenho possível, penso ser o que aquele que faz tem todos os recursos, instrumentos, força, e conhecimento para fazê-lo. Um desenho possível é aquele que não apresenta necessariamente contradição ou dificuldade que não possa ser atravessada. Um desenho possível seria aquele que qualquer um com dois braços poderia fazer perfeitamente. Agora, o que seria o desenho de um sujeito com restrições de movimento, por exemplo? O que seria o desenho de uma pessoa com restrições nas mãos? O que seria o desenho de uma pessoa sem braços? O que seria o desenho daquele que não tem mais forças para parar em pé? Daquele que lhe foi sacado tudo? Daquele que apostou todas as suas fichas? Como continuará jogando, o sujeito que já apostou todas as suas fichas? O que terá que dar para o cassino como crédito para continuar jogando?

Diria que os desenhos grandes, ou o “desenho impossível”, apresenta essa questão – os desenhos grandes são o pagamento daquele que não tem mais fichas para jogar – mas está dentro do jogo –, então tem que dar um jeito de pagar em uma moeda que não existe em seu bolso. 

Colocando essas ideias abstratas de modo mais prático. Para esses desenhos existirem, a primeira coisa elementar que RES entendeu foi que o papel teria que ser muito forte, teria que ser um tipo de papel que suportasse tamanha violência sem ser totalmente destruído, um papel que resistisse a um grande impacto. O papel utilizado nos desenhos é o Arches 300g, da fábrica francesa que existe desde 1492. Um elemento importante no caso dos desenhos maiores, é que RES não somente esgota o seu gesto e sua suficiência, como acontece no caso dos desenhos menores, mas aqui, RES também leva a resistência do papel até o seu limite. Joga água, álcool, fogo, pólvora, amassa inteiro, joga na lata de lixo, pede para seus assistentes pisarem em cima dele, arrasta pelo chão sujo do Atelier, urina no desenho, cospe, e por aí vai, buscando executar ações não só “não convencionais” como também ações “sujas”, ações “incorretas”, ações que escapam do léxico de ações possíveis para se fazer com um papel. (Pequena digressão: essas ações que RES executa nesse momento, aproxima ele de um “criminoso”, um “assassino”, no sentido de executar o que é proibido, executar o fora da lei, executar o seu ridículo, executar aquilo que escondemos diariamente na tentativa de sermos civilizados. Nessa linha de pensamento, vejo uma relação profunda com o artista Paul McCarthy, nas suas performances em que estressa o grotesco, ou mesmo com grupo de Ativistas de Viena dos anos 60, que inclui Otto Muehl, Günter Brus, Rudolf Schwarzkogler e Hermann Nitsch. Todos esses artistas têm em comum a vontade de levar algo até seu limite, seja as possibilidades do corpo, assim como as possibilidades do papel, ou mesmo levar até o limite o próprio ridículo, escatológico, estado animal).  São procedimentos parecidos filosoficamente com os procedimentos executados nos desenhos menores, que se traduzem agora a uma grande escala.

A diferença, porém, de RES com os artistas citados é que tais ações de RES não são o fim de seu desenho, mas o meio para que o desenho possa então existir. O desenho não é uma ode ao descontrole, o desenho não é uma ode ao caos e ao proibido (e não quero aqui limitar o trabalho desses artista à essa ideia necessariamente), mas o desenho de RES parte dessas ações para que algo seja exaurido, para que algo seja ultrapassado, atravessado, para não sobrar desejo no desenho, para que o desenho não seja algo que exista para suprir um desejo do artista, mas para que o desenho seja a própria falta, o desenho seja o atravessamento de uma suficiência, o atravessamento do estado  de ter fichas infinitas para jogar. Colocando de forma poética e oportuna, o desenho não é o estado de tempestade em alto mar, mas o estado que segue a tempestade, o estado após todos os marinheiros se exaltarem, após entrarem em estado de concentração máxima para não deixar com que o barco afunde, o estado após o tumulto, o desenho é o vazio que surge ao ter atravessado o impossível. 

Particularmente, gostava muito de assistir às sessões, gostava de ficar percebendo suas ações (mas não tinha distanciamento ainda para tentar acompanhar o que ele estava mesmo fazendo). Via o que acontecia, mas não sabia o que estava acontecendo, não acompanhava as relações filosóficas implicadas nos procedimentos. Pelo menos, não essa que aqui gostaria de observar.

A cada intervalo do embate físico com o papel, Rubens sentava-se e em silêncio, observava a imagem. Podia passar horas nesse estado. Esse momento era muito decisivo, nunca soube o que mesmo ele via, o que estava lendo, pensando, analisando, refletindo. Era um momento muito íntimo e silencioso. Levantava-se então, e voltava às ações. Claramente suas ações vinham de respostas ao que o papel tinha lhe comunicado, havia ali uma sismografia dos sentidos do próprio desenho ainda incrustado na trama do papel.

Até que, depois de esgotar algo (de si mesmo e do papel, como já tentei expor), outra coisa começava a acontecer, RES começava os procedimentos científicos, altamente calculados: Construiu o desastre para agora reconfigurá-lo e resgatar uma ordem profunda assimilada em torno do caos. Com a imagem em mente do “barquinho”, ou das paisagens, por exemplo, ele começa a sismografar as possibilidades de localizar o barquinho ou paisagens, ou um respiro diante da situação bélica que instaurou – eis o que acontece com tudo que ele faz. 

RES cria dispositivos para que o lugar conhecido desapareça, cria um cenário incômodo para justamente ter que inventar novas saídas; se coloca em um lugar desconhecido, para sismografar esses espaços ainda não conhecidos por ele (esses espaços são o desenho, e consequentemente ele mesmo). O interesse de RES pelo caos ou pelo “problema”, pelo “desconhecido”, está na possibilidade apresentada de desenvolver novas ferramentas para ordem, ou, como insiste, para uma organização. Assim que RES tem uma situação insolúvel erguida, ele começa a escavar as novas soluções que cada condição lhe apresenta. Assim como a guerra é um momento oportuno para novas invenções e descobertas científicas, médicas, industriais, etc, RES cria uma situação de guerra para ter que ativar espaços ainda não acionados dentro dele mesmo.

As operações são muito parecidas, já que o objetivo me parece o mesmo: encontrar, a cada dia, soluções novas, ferramentas novas, modos de existir novos, formas novas. É uma obsessão pela forma, uma obsessão pelas infinitas, realmente infinitas possibilidades de fazer, de ser, de existir, de pensar, de executar, e para isso a premissa parte de um lugar zero dogmático, zero moral, zero maniqueísta. Penso ser essa uma grande narrativa de seus desenhos, sejam eles grandes ou pequenos.



O Prático: Reflexões sobre a obra de Rubens Espírito Santo

 

Percebo-me pensando sobre a língua e o que a antecede, a construção antecedente à língua que a constrói e como que concomitantemente a língua nos constrói. 

Entendi com clareza que R.E.S., ou isso que chamamos de “um grande artista” não fala a mesma língua que os demais. E isso não significa que necessariamente as palavras sejam outras, que os verbos sejam conjugados de maneira excêntrica, que a sintaxe seja ordenada de forma mais “livre”, mas toda a estrutura da língua é outra, e isso significa: toda a sua estrutura de apreensão da vida é outra. Assim como para um alemão pode não fazer sentido o “jeitinho brasileiro”, para um grande artista a orla de compreensão, apreensão, resposta à vida dada por um ser ordinário, comum não faz sentido algum. Nossa língua é um DNA de quem somos, e mais, somos hoje prisioneiros dessa língua, se ela nos possibilita tais frases a serem articuladas então isso significa que essa articulação faz parte do nosso sangue, de nossa epistemologia, de nossa história, somos completos prisioneiros da língua, e também, somos nós que a inventamos, e ela nos inventa.

Da mesma forma que a estrutura do japonês é outra, da mesma forma que o japonês ou o grego são intraduzíveis – não por não termos as mesmas palavras que eles, mas porque o nosso ser está estruturado de forma diferente, o que é intraduzível não é uma palavra, mas é a vida que passa por aquele que a profere. 

Acho bastante significativo a nossa língua permitir a construção de uma frase como “a vida não faz sentido”. Acredito que a sintaxe disponível na nossa língua para tal elaboração já diz muito sobre a nossa doença e sobre as nossas dores. Claro que, Freud mesmo diria, a angústia que constrói a neurose e não o contrário, então faço um paralelo nessa problemática ainda para complicar mais um pouco: a dor é que constrói a língua, a angústia que inventa a língua, ainda que a língua nos aprisione. Logicamente, poderia então concluir que “nós nos aprisionamos?”

Me pergunto se para um esotérico, se para alguém como Madame Blavatsky teria alguma lógica a afirmação: a vida não tem o menor sentido. Sinto, que, de algum modo, tal afirmação expõe uma arrogância, uma prepotência do homem, uma prepotência ancestral, ontológica do homem em achar que está no comando. Acompanhando R.E.S., percebo que essa elaboração realmente não faz mais sentido para ele, mas não de forma demagógica, ou porque ele construiu uma obra, ou porque tem muitos alunos, muitos empreendimentos, e porque por isso não tem “tempo” para deixar tal coisa ser pensada. Não acho que seja por aí. Mas todas essas coisas provêm de uma vida estruturada justamente em torno de uma profunda consciência de insignificância, de humildade (apesar de todos esses termos serem definições de uma jovem que está construindo uma vida para ser dobrada, então provavelmente esses termos não sejam os melhores do seu ponto de vista), estão circunscritas por um saber de que não está no controle – a vida é o sentido, é o único sentido que temos, estamos querendo constantemente atribuir sentidos mundanos à vida, atribuir sentidos vulgares e muito menores à vida. Me parece que se trata de uma questão lógica: realmente, dentro do tipo de sentido com o qual queremos entupir a vida, ela não terá, pois ela é muito maior que esse tipo de sentido, querer atribuir à vida um sentido vulgar fará com que a vida, desse modo, não tenha mesmo sentido. O sentido parece estar murmurando em nossos ouvidos dia e noite, basta acordar, basta inclusive estar dormindo, o mundo pode estar em guerra que o sentido da vida continuará murmurando. E mais, não hesito em pensar que as guerras fazem parte desse sentido, dessa lógica, dessa teia. 

Me parece mais que é uma questão de encontrar, de ouvir as pistas de sentido que a vida nos oferece. Retroceder. Nós é que somos arrogantes, o sentido da vida está em uma estrutura gramatical que é muito maior que a nossa e por não a acessarmos, já concluímos que não há. 

A língua que falamos hoje está correndo por esse afluente do sem sentido, está correndo por um afluente de uma construção que teme profundamente olhar para o outro, para o nosso vazio, nosso suposto “vazio de sentido” e ver nele o “brilho do que é verdadeiro”, como diria Beuys. É justamente nesse vazio que se encontra todo o sentido em latência, é nesse vazio que murmura o sentido. 

Acredito que se tornar um artista seja entrar nessa linguagem, seja subverter as leis de uma língua imposta por um país, uma sociedade, um tempo, e com os recursos dessa língua, transfigurá-la, para que ela dialogue, para que ela se ajuste em uma língua que é muito mais sutil, na língua do sentido. O “sentido da vida”, poderia dizer, é a sua própria língua, é uma língua em si, possui seus códigos, suas leis, sua sintaxe, gramática… o lindo disso é que o vocabulário dessa língua, as palavras dessa língua são ordinárias, o vocabulário pode ser a subjetividade de cada ser humano, pode ser o display que seja: gastronomia, pintura, texto, malabarismo, engraxate, camponês, pouco importa, não há o display correto, inclusive, o display está constantemente querendo ser inventado. O display está todo por fazer, a humanidade estará sempre por fazer.

Mas esse sentido, essa língua a qual me refiro não se aloja no vetor dialético do sim e não, do ter ou não ter algo, da sanidade e da loucura. Esse sentido não se trata de uma oposição a algo, R.E.S. não faz uma oposição a um sistema, a um tempo, mas dentro desse tempo, dentro dos recursos que esse tempo oferece os transforma em outra coisa, devolve à ontologia do tempo o próprio tempo fugitivo, o presente que nos escapa, as possibilidades em latência, invisíveis aos olhos obstruídos por verdades que construímos e que nos foram impostas.

O que então me parece realmente grave, é que os sentidos da vida foram todos impostos a nós, o rumo da vida parece só ser um, o rumo da vida parece já estar preestabelecido, as profissões já foram tachadas, a ordem é só uma, as relações seguem um script, a fala, o pensamento, o comportamento, a educação, todos já estão pautados por um roteiro desse tempo. Intuo, porém, que criamos todas essas verdades pois não suportamos um grotesco vazio, não suportamos não suportamos a deriva, não suportamos não estar no controle, então inventamos um falso controle através de nomes, rumos, profissões, conhecimento, receitas, scripts, enfim, um modelo de sociedade e de vida, um fim muito específico para a existência. (É mesmo desesperador). 

A questão que realmente me fascina, e que acredito ter muito a ver com ter volume de vida, quem sabe é que aquele que tem volume de vida é aquele que suportou destruir, arrebentar, assassinar todos esses supostos “sentidos” impostos por uma sociedade, um país, um tempo, uma classe social, e permanecer em um vazio de sentido, que não significa ser um sem sentido, não corre por esse afluente epistemológico; mas significa suportar um vazio e trabalhar em direção a poder ser apresentado pela vida o seu sentido. E assim, tecer os elos perdidos, em latência desse profundo sentido, sem autoria, deixar com que a vida se crie através de nós, ser mesmo um agente da vida. Ou seja, ter volume de vida seria então para aquele que está mesmo vazio, para aquele que tem espaço de manobra. Ironicamente, volume de vida só tem quem está vazio, para assim ter espaço para manobrar a vida no mundo. Um mundo que na verdade, secamente, com uma luz tão forte que é insuportável, é vazio desse sentido que estamos constantemente dar para ele. O mundo é cru. É de uma crueza insuportável. Mas só é possível inventar dentro dessa crueza insuportável. Negociar com o insuportável dessa crueza até que a crueza comece a se transformar em outra coisa – quem sabe essa outra coisa seja uma invenção. Por isso digo que Rubens é um assassino. Um assassino de todo um sentido da vida que lhe é constantemente imposto, e, para não ser leviana, que seu próprio corpo quer constantemente o impor, já que de algum modo, nosso corpo precisa se proteger de si mesmo. Mas o artista negocia com forças maiores para que o corpo possa finalmente voltar a conviver com si próprio. E só através desse assassinato, e de um arsenal de ferramentas, Rubens faz nascer o novo, a partir do não ter nada, ter algo. Por isso que não tem limites, e que pode tudo. Pois é justamente ao não ter nada, que se pode ter tudo. 

Rubens é o prático que manobra a vida que o atravessa no mundo. Negocia um espaço no mundo para essa vida.

 

Pequeno relato sobre a experiência de presenciar a encomenda: Depois da sessão de desenho de sexta de Rubens Espírito Santo

 

Vendo R.E.S. trabalhar, me dou conta, considerando a velocidade de seu pensamento prático, a velocidade com que ele adquire soluções, com que ele busca novos utensílios de guerra, novos instrumentos de batalha, instrumentos, armas que o salvam em uma batalha, as soluções vem, não como “soluções plásticas”, mas como soluções que realmente o salvam de não ser derrotado, derrotado por ele mesmo, pela sua insuficiência, ele quer poder ser derrotado pela suficiência, pelo fracasso em construir uma obra que será maior que ele mesmo, o seu fracasso se torna, não em não ser capaz de produzir, mas o de produzir algo que é maior que ele. Ou então, voltando a considerar o próprio modo como age, me dou conta de que ele mesmo, com tantos assistentes, é um assistente, Rubens recebe ordens e as segue, é como uma antena que capta sinais, se instrumentalizou para poder colocar esses sinais no mundo, criou todos os artifícios necessários para que esses sinais existam para fora da latência. Esses sinais, ou, o seu desenho já existia antes dele, já existia antes de ser feito, mas Res gerou um espaço propício para que o desenho pudesse existir em outra ordem de existência, existir enquanto o que ele se apresenta diante de nós – é mesmo um ato generoso, o de fazer algo que já existe (mesmo que escape nossa visão), para esse mundo, matérico, como mesmo uma encomenda. O desenho é uma encomenda que passa por R.E.S. para existir, R.E.S. é o veículo de existência dessa encomenda, é o carteiro, que busca a encomenda em um lugar e o leva para outro, R.E.S. busca o desenho no kairós, em um espaço invisível que se encontra entre ele e o papel, e o traz para a natureza, e assim, irrompe as distinções entre esses mundos, entre os tempos, o desenho se torna justamente a fresta, a possibilidade de reunião desses dois mundo, que na verdade estão cindidos enquanto “dois” por uma crise espiritual do nosso tempo. Talvez esse possa ser um termo a se pensar, o artista enquanto o carteiro, que recolhe a carta em um banco de dados e de códigos e de leis próprias e a traz para outras leis, para outra esfera, outra galáxia, ainda que essas duas galáxias sejam a mesma, o carteiro faz o trabalho sujo de transfigurar uma coisa para outra, transformar um código amorfo em matéria, mas matéria também amorfa, ou seja, a coisa não deixa de ser o que ela já era, mas agora se apresenta encarnada no desenho diante de nós.

 

E então essa encomenda passa a existir dentro do universo plástico, cultural, temporal, social de R.E.S., assim como foi com Cézanne, ele foi o veículo de existência de sua pintura, e é aí onde ambos, R.E.S. e Cézanne se encontram, a primeira camada do desenho pode representar ou situar o artista em uma história cronológica, mas depois dessa camada, os desenhos dividem o mesmo sítio histórico anacrônico. A primeira camada do desenho é o artifício que sustenta o desenho que na verdade é o que situa-se entre o anteparo da pintura de Cézanne e o desenho de R.E.S. – entre esses dois encontram-se ambos. E como o Rafael Chvaicer muito precisamente falou, “R.E.S. fez algo que Duchamp gostaria de ter conseguido fazer: eliminar a mão do artista, através da mão do artista” – a mão de Rubens é somente um instrumento, como mesmo disse antes, um canal, um dispositivo de ação de algo que não é dele. A questão então é investigar qual o trabalho para poder se despossuir de tal forma, e só então nessa despossuição, poder estar em devolução de si mesmo. Benjamin em sua passagem sobre o colecionador diz que um colecionador pode ter muitos objetos, mas isso não significa que ele os possui. Rubens ao abrir mão de se ter, é possuído por ele mesmo – e sabe que ele mesmo não lhe pertence. 

 

REFLEXÕES SOBRE O DESENHO DE SEXTA DE RES: Usener XII – 1º Estudo para uma Gravura Autorretrato

07 de abril de 2017
 
Res, Usener XII - Estudo para uma gravura autorretrato, 7 de abril de 2017_Rubens Espírito Santo
Res, Usener XII – Estudo para uma gravura autorretrato, 7 de abril de 2017

 

A conclusão que hoje me toma muito fortemente é a de que Rubens sabe exatamente o que ele quer, e assim me dou conta de que isso não conclui nada, só inicia um pensamento de algo que parece ser um código secreto diante de mim todos os dias – o que é saber o que você quer? Qual o objeto desse querer, que estamos chamando de desenho, mas que também parece se ancorar no desenho como um alicerce para existir. O desenho é um dado material desse querer, mas o desenho também me parece como um nó, um laço em uma grande corda que está sendo tecida para segurar outra coisa, algo que me escapa da visão, mas que não deixa de estar lá, visível diante de mim. Me pergunto que futuro é esse pelo qual o desenho pertence, se esse futuro é possível para nós seres humanos ou se será um futuro que para sempre será futuro, ou, o por vir, um tempo que teremos que criar em nós para acessar, um futuro de nós, o futuro de mim agora, que existe em mim sempre um passo à frente de mim, o meu saber que nada tem a ver comigo, o que se sabe em mim, quem sabe seja esse o futuro pelo qual o desenho pertence. E quem sabe seja esse o saber que sabe o que quer, não do desenho, mas de Rubens. O saber que sabe de RES usa RES para construir o seu desejo, então o desejo passa a ser um desejo do “saber”, e não um desejo de RES.

Por isso não se trata necessariamente de esperar um momento da vida em que o desenho se fará compreensível, ficar esperando esse tempo futuro onde eu possa melhor assimilar o desenho, mas o de construir maciçamente esse tempo agora – esse tempo nunca vai chegar se esperarmos por ele, pelo contrário, esse tempo é o que nos espera constantemente, dia e noite, para que o encontremos em nós. Esse “tempo futuro que pertence o desenho” não se trata de um dia que vai chegar, mas um dia que eu vou construir para poder vivê-lo, vou me construir, me esculpir para poder um dia ser assaltada por esse futuro de mim e poder sustenta-lo – entendo esse momento de gozo profundo, quem sabe, um gato que os grandes mestres dão na morte: invertem, subvertem a gramática de tal maneira, que vivem nesse mundo em um tempo atípico, suspendem a ideia de início e fim, onde o discurso é para alguns só código, mas para outros, a única possibilidade de se ter uma conversa , em suspensão – é mesmo puro gozo!

E quem saba aí esteja uma pista da previsão de Rubens do futuro da arte, já que cada desenho é um veículo para que ele adentre um tempo que sempre estará por vir, e dessa forma, o “passado” da arte não é necessariamente obsoleto, já que ele está sempre para acontecer, está sempre em seu futuro; o próprio Giacometti é para o futuro, ainda que esse futuro seja agora no desenho de RES.

 

Eutanásia

Depois da sessão de RES de 27 de outubro de 2017

 

Eutanásia – Rubens Espírito Santo

 

Coesão estética. O que poderia ser um uso adequado desse termo? A sessão de desenho da última sexta parece ter gerado uma abertura para uma possível nova compreensão desse termo. Algo em movimento, na fusão ou na vontade de se fundir com a contradição, de retornar a ser contradição, no retorno de poder gerenciar displays para a linguagem de estar vivo. 

 

Me ocorre muitas vezes que RES é um homem muito perigoso – e abre novas fronteiras para novos espaços para o perigo poder atuar. 

Colocamos o “ser perigoso” como algo pejorativo, “perigoso”, reprimimos o “ser perigoso” de nós, e acredito que aí é onde mora mesmo o perigo. Falamos muito de gratidão, e vejo no modo como RES opera no mundo, um gesto de agradecimento à vida: não permite que o “ser perigoso” seja reprimido, seja jogado fora, seja colocado de lado, afinal, como disse Nietzsche, “e se o nosso pior for também o nosso melhor”? E por que somos tão tímidos em buscar diferentes lugares para articular o nosso perigo, o nosso demônio? Creio que aí está mais um dado interessante sobre RES ser um artista para tempos futuros, quando inclusive, quem sabe, essa palavra “artista” nem mais exista. RES é então um homem do futuro, assim como o homem hoje está pensando em novos displays possíveis para poder viver no espaço, novas linhas de produção, novos tecidos para roupas, novas profissões, uma nova estrutura de solução, um novo espaço de solução que será necessário para o espaço. O homem no espaço não pode se fiar nas soluções da Terra, tem que pensar novas soluções para o espaço. RES não se permite ser leviano com sua condição, com a quantidade de energia que passa por ele, com sua contradição, RES está constantemente construindo recursos, novos espaços possíveis que possam abarcar a contradição – com um problema no espaço, não podemos nos fiar nas soluções da Terra. Essa me parece uma metáfora perfeita para a sua obra: não podemos mais nos fiar nos moldes que fizeram de nós, não podemos responder às demandas da nossa arquitetura psíquica como nos foi ensinado, podemos responder de outros modos, podem inventar novos arranjos dentro de uma arquitetura já dada. RES lutou diariamente para não se deixar ser domesticado para se adequar a um tempo, mas pelo contrário, se ficcionou, inventou novos arranjos de si, para assim conhecer tempos vindouros. RES entendeu que pode inventar uma linha de produção no espaço, isto é, entendeu que o display da sua violência, do seu perigo, não precisa ser como o de um estuprador de criancinha – quer ser ainda mais criativo que este, quer inventar displays, novos espaços possíveis para seu perigo. 

RES articula-se então em uma agressiva luta contra qualquer tipo de entrave que a vida lhe apresenta, já que compreende o entrave não enquanto problema, mas enquanto oportunidade para invenção, para descoberta, para descoberta de um novo homem. Sua obra não se trata mais de criar um objeto de arte, mas de inventar dispositivos para a vida, inventar novas formas de estar vivo, de estar constantemente inventando novos displays para a vida. 

Importante detalhe: não é, porém, que Rubens se utiliza de “displays da arte” como um espaço de descarga de sua violência, não se utiliza da arte como uma descarga de energia, mas o próprio assassinato está na abertura para se manobrar de tal forma em torno de diferentes lugares, a violência está na inventividade, a violência está em não aceitar as formas como elas nos são dadas. Já passou da fase de usar arte para poder ser violento, agora, a destruição dos lugares comuns da arte (ou, de si mesmo) é o display que encontrou para sua violência. O display da escultura ou desenho de sexta não é o desenho de sexta, mas o display são as manobras para poder fugir de um lugar já nomeado. 

O display já não é mais o objeto. Ou o objeto não é o objeto que achamos estar vendo. O display / o objeto é o intervalo que o antecipa e que o constrói, e que está lá, e vemos, ainda que não conseguimos nomear. É aquela coisa que nos comove, em um papel modelado com cola e água. É a própria incompreensão da comoção em algo tão material, é o transcendente passando diretamente para algo imanente.

O display? É o espaço infinito de possibilidades que antecipa o objeto – é o pré-objeto, o segundo antes de chegar à forma é todo o infinito do segundo que antecede o objeto final que está contido no objeto. E faz dele assim, algo em movimento, algo inacabado. 

 

Tentando ver o desenho Derviche de RES

Anna Israel
Santos, 26/08/2017
 
Res, Derviche, 14 de agosto de 2018 (Coleção Particular)
 
Como um objeto pode conter uma visão de mundo? O que de fato isso significa? Ou melhor, como uma visão de mundo pode se transformar em um objeto? Vejo esse objeto de RES, o Derviche, e não vejo um objeto, um desenho, uma escultura dentro de uma cúpula, inclusive, não vejo uma cúpula. Então o que existe diante de mim? O que estou vendo? Quando RES opta por esse recuo dentro do espaço, esse espaço vazio dentro da estrutura de acrílico, quando opta pela cúpula não ser quadrada, me parece que essa escolha permite que essa estrutura deixe de ser o que entendemos por uma cúpula, e passa a ser uma visão de mundo, passa a ser um espaço, um espaço psíquico, um espaço de interlocução com o seu desejo, consigo mesmo.

A escolha em fazer essa cúpula de acrílico retangular imediatamente faz com que ela deixe de ser uma cúpula para o desenho, sendo então parte constituinte da construção de uma visão de mundo de Rubens. Isto é, a cúpula não é mais cúpula, mas é um abrigo, é uma questão de vida ou morte não para o objeto que está dentro dela, mas para o próprio Rubens, que é, também, o objeto. Rubens não vê mais objeto, não vê mais cúpula, não vê mais nada como é projetado pelo tempo para ele. Ele deixa com que a coisa se projete nele, e ao deixar as coisas o penetrarem, ele se torna um receptor, também, coisa nenhuma. Pois não é ele que vê, não é ele que nomeia, mas as coisas que se utilizam dele para poderem existir no mundo.

Fico pensando sobre querer copiá-lo, copiar seus procedimentos, inferir suas manobras e me dou conta de que não há como forjar um espaço psíquico, não há como forjar um acesso, não há como forjar o recuo vazio da cúpula de acrílico. Um objeto como esse não se trata mais de plástica, não se trata mais de “arte”, mas são escolhas na vida de um sujeito que vão o moldando para que essas escolhas sejam o motor de decisões futuras, as nossas escolhas são as bases de nossas respostas para a vida. Nossas escolhas respondem por nós. Por isso, acredito que Rubens opera tão rápido, por isso é tão rápido para RES olhar a cúpula e entender que ela precisa de um recuo, pois não é RES que decide isso, não se trata de uma decisão plástica, mas foram as escolhas que RES fez em sua vida que entenderam ser necessário o recuo. 

Hoje, vendo essas imagens, sinto tremenda vontade em continuar olhando para elas, as pensando, refletindo sobre o que eu estou vendo nem que essa reflexão seja através de minha comoção, nem que a reflexão esteja no display de um tilt em mim, uma compreensão de que o que estou vendo não é um objeto de arte, e sim uma extensão de seu braço, uma extensão de sua alma, uma cápsula que contém sua atmosfera, o cheiro do ar que exala para fora de seu nariz, depois de percorrer por todo seu corpo. Esse desenho fede à atmosfera, ao cheiro que RES sente dentro de sua prisão. Nesse desenho posso sentir um pouquinho esse cheiro. Acho especialmente interessante essa manobra onde o desenho deixa de estar dentro de uma cúpula no momento em que Rubens a faz retangular, um prisma. Assim como Matisse acaba com a ideia de pintura enquanto objeto fechado quando pinta o atelier vermelho, a pintura, a tela, aquela superfície quadrada é “somente” uma plataforma para ele tomar decisões frente às quais sua vida está em jogo, a superfície retangular de Matisse é o display onde ele pode ser um assassino sem ser preso, ele já está preso – as decisões me parecem parecidas, não são mais plásticas, não são mais intelectuais, acredito que só são decisões vitais, decisões fundamentais para que a vida possa continuar em movimento, decisões fundamentais para desobstruir um sangue empossado do tempo, cada um em seu tempo, cada um com seu display.

Para um grande artista, as decisões que chamamos de “plásticas” são tão naturais e essenciais que o que entendemos por plástica ganha inclusive uma dimensão muito mais profunda, muito mais vital. Não acredito que um “nível plástico” possa ser elevado. O que se eleva é o grau de comprometimento com a vida de um sujeito, e isso movimenta suas articulações no mundo, isso é o que chamamos de um altíssimo nível plástico – já não tem mais a ver com plástica. 

Penso que a decisão por essa cúpula dessa forma, nessa conjuntura me faz compreender – a cada dia vou fortalecendo mais um pouquinho a tessitura dessa compreensão –  que RES não mais é um artista, e que não está interessado por arte, mas que está interessado quem sabe pela vida. Há algo seríssimo e muito profundo na escolha de não fazer a cúpula quadrada, da cúpula não ser o display do objeto, mas da cúpula fazer parte dele. A própria ideia de display para RES já é outra. O display para RES não é algo que vai dar valor ao trabalho, deixá-lo “digno”, dar brilho ao trabalho para o mundo, como a arte contemporânea entende o display. Quem sabe o Derviche só exista para que exista essa cúpula, esse espaço, essa prisão. Um é inerente ao outro. RES não arranjou um display para colocar o seu Derviche, não concebo esse movimento dessa forma, para que ele possa estar bem “emoldurado”. Mas RES inventou uma tecnologia para poder devolver ao Derviche o seu sítio de habitação ­– sua prisão. Só a prisão, somente aprisionado esse objeto pode repousar em sua liberdade. Fora da prisão ele está descontextualizado, fora de sua prisão ele não existe. Somente podemos existir através da impossibilidade de existir, só posso existir através da minha carne, do que me trava a existência, do que resiste, me impede. O interdito é o caminho. Já que RES despertou esse chamado, já que acendeu a chama do Derviche para o mundo, concluiu o seu trabalho dando a ele o seu único cômodo possível. Um pouco como nos rituais de umbanda, que oferecem aos santos o que eles mais gostam, um modo de fazê-los se sentirem em casa, um modo de lhes dar prazer, de deixá-los felizes. Esse objeto laranja que envolve o Derviche não se trata de uma cúpula, se trata de uma pele, um corpo. Precisa cuidar bem do que chamou, do que invocou, isso que invocou agora torna-se parte de sua responsabilidade, isso que invocou agora é um novo agente de suas escolhas.

 

Ensaio sobre último desenho de RES dedicado ao Fedro de Platão

Tentativa em V partes de expor o que pude ver desse acontecimento
05.março.2017
 

 

PARTE I

(ou uma breve introdução visando um início de organização dos lugares das coisas)

Fiquei pensando sobre o pouco que entendi do que a Manu falou, sobre o seu desenho ter a mesma força que o “Ma Loute”, de Bruno Dumont. Mas eu discordo, particularmente acho que esse desenho não tem nada a ver com o filme do Bruno Dumont, claro que posso estar sendo leviana, e até mesmo arrogante, mas o Bruno Dumont sonha com o seu desenho, ele sonha que isso seja possível, mas não sei se realmente acredita que ele mesmo possa fazê-lo. Acho importante essa incisiva observação neste texto, pois acho urgente sabermos separar as coisas, não de forma maniqueísta, mas de forma mesmo que possamos entender como uma coisa pode alicerçar a outra, e como uma coisa realmente dialoga com a outra. Acho importantíssimo sabermos discernir uma coisa de outra, para podermos inclusive não somente ver melhor as coisas, como entender, o lugar de cada coisa, e como o fato de cada coisa ter e saber de seu próprio lugar é imprescindível para que algo possa acontecer.

Eu acho seu filme brilhante, acho “Ma Loute” brilhante, mas principalmente sobre um ponto de vista crítico. Acho que ele faz uma belíssima crítica de arte, do nosso tempo, da epistemologia miserável que nos apropria como um limo gosmento e perverso. Acho o filme de bruno Dumont uma previsão para tempos vindouros, uma aposta para um novo ser humano, mas acho que essas questões são só o início das questões no desenho de RES. Não há como não relacionar de imediato esse desenho, em particular, com o cinema do Tarkovsky – e é aí onde “saber ver” ganha uma dimensão que acho particularmente urgente. É mesmo um amuleto, um talismã, um objeto que RES traz para o mundo da presença, para este mundo que podemos ver, Rubens trouxe um objeto impossível para o possível, mesmo que ele nunca deixe de ser impossível, já que sempre será maior do que nós. Mas ser maior que nós é a grande beleza do objeto, e perceber espasmos de compreensão de algo maior do que eu faz com que eu mesma perceba que eu sou maior do que eu, que em algum lugar secreto de nós, esse desenho dialoga, esse desenho conhece e nós conhecemos, ainda que desconheçamos este conhecido; ele grunhe dentro de nós e desperta uma nova compreensão do que somos, ou, do que é em nós, do que existe de fato, que sou eu, para além de mim: a mais preciosa partícula de vida – apesar de supostamente insignificante nos dias atuais –, e que, sem ela, não existimos. Ela é humilde o suficiente para não necessitar ser notada ou ser “a grande estrela” do espetáculo o tempo todo, mas ela está lá, em seu quartinho minúsculo, escondido, no sótão de nossa morada, já que ela não precisa de nenhum quarto maior, não precisa possuir grande espaço, pois o espaço todo já lhe pertence.

Nesse sentido, compreendo a aproximação do desenho com o filme de Dumont, mas me arrisco em dizer que acho impossível um diretor francês fazer filme no nível desse desenho – os tempos são outros, a organização é outra, as configurações estão se reajustando, estão em movimento, as configurações estão em um momento de suspensão, seus elos estão suspensos, soltos, e em latência para serem reajustados. Bruno Dumont está fazendo um grande favor para o seu país, o grande pai do cinema, e esse favor diz respeito a destruir toda uma visão de mundo, mas Rubens faz um favor com a sua obra que não acredito que seja mais um favor ao seu país, não sei se sua obra tem país, acho mais que esse desenho também não é um favor, mas realmente uma obrigação. Rubens não tem saída, se o desenho fosse só desenho ou se ele fosse pelo seu país, já poderia ter terminado duas horas antes, mas o tempo e o caminho que ele, o desenho, ordenou que RES o levasse, faz com que eu abra mão de tudo que poderia vir a pensar sobre ele, já não diz respeito a esse tempo, muito menos a um país, acho que diz mesmo respeito ao mar, ao grande oceano que intervala as massas de terra, intervala os supostos “países”, os supostos “nomes”. O desenho não tem nome, ele é o que nomeia, ainda que “não idioma”, num idioma que nos custa a nossa existência identificada.

E voltando a deixar clara a minha visão sobre Bruno Dumont: não acho que o fato de seu filme não estar à altura do desenho de Rubens o desmereça, pelo contrário, acho vital a necessidade de existência de seu filme, mas seu filme não deixa de ser um filme deste tempo, uma previsão para tempos futuros, um mundo futuro menos doente, mas o desenho de RES não prevê um futuro para esse mundo, ele dialoga com um tempo mítico, ele proclama o impossível dos tempos. E o “Ma Loute” de Dumont é mesmo um sonho do seu desenho, é um desejo de que algo como o seu desenho seja possível, e quem sabe a existência de seu cinema seja imprescindível para gerar força em Rubens para a batalha de sexta, para que Rubens não deixe de acreditar no que é seu – já que outros homens estão cuidando da terra, Rubens deve comungar com as estrelas.

PARTE II

O que quero dizer quando digo que o Rubens não espera nada do desenho:

O desenho é quem espera por Rubens.

Que é também muito diferente de dizer que o desenho espera “de” Rubens. Quando digo que o desenho espera por Rubens, digo que há algo que sempre pode ir mais, esperando para que nós o encontremos, o desenho, já existe, já existe em algum lugar perdido de um mundo que não podemos ver, assim como o Rubens que vem a tornar-se após o desenho, também encontra-se em aguardo, em espera, em algum espaço. Há uma espera de nós em algum lugar, algo espera por nós, quem sabe a vida mesmo espere por nós, a nossa própria vida nos espera por ser resgatada. O desenho espera por RES, o desenho, espera esse encontro, onde RES deixa de ser RES e o desenho deixa de ser desenho para que ambos possam voltar a ser o que o tempo exige que sejam. Rubens, percebo, ouve esse chamado, ouve essa suave voz do chamado, como um canto de sereias, que embriagava os marinheiros na Odisseia; Rubens embarca-se em uma jornada sem se prender a pilastras com cordas tensionadas, Rubens distenciona as cordas justamente para assim poder instaurar a tensão real: a tensão de ter as cordas soltas, a tensão de não mais estar sob tensão, a tensão de não mais usar artifícios de tensão, de não mais usar artifícios para existir, para fazer, para se queixar; a tensão de um bicho solto, que suspende todas as regras para buscar a sua salvação, para buscar a si mesmo em uma jornada que pode não ter retorno – o desenho é o amuleto dessa jornada, é o que possibilita que seus pés continuem fincados ao chão, o desenho o conduz, ainda que o desenho ainda não exista, a coisa não existente do desenho é o que faz o próprio desenho, é o que sussurra ensurdecedoramente no ouvido de Res pra que ele não pare, para que ele continue seguindo o caminho no escuro da floresta, onde seus parceiros já lhe deixaram só, onde está só ele, e a coisa não existente o guiando.

RES ouve o que Homero chamou de “canto das sereias” e vai até elas, e a tal ponto descobre que as sereias não são mesmo sereias, Rubens descobre a real identidade das sereias, e negocia com elas o valor de despi-las, despir a fantasia através do seu desenho, e lentamente, arrancar de si mesmo mais uma camada de pele de sua própria fantasia no mundo. A cada conquista, ou a cada destruição, mais intenso é o cheiro do sangue de sua carne viva sendo exposta, a cada conquista menos identificado Rubens se torna de si mesmo, e ao mesmo tempo, mais próximo está de sua impossível identidade.

O desenho espera para que RES o inaugure no mundo, em três horas de sessão, de uma batalha; abre uma fenda no tempo para que o desenho se desenvolva, revolva-o da forma como ele bem quer vir a existir. E enquanto RES espera por algo, o desenho não vai existir, RES, pelo contrário, é aquele que tem que ir atrás, tem que desflorar as florestas virgens supostamente invisíveis diante de nós e resgatar o desenho para esse mundo. É uma batalha muito sutil, e muito violenta entre muitos mundos, entre as infinitas camadas de espaços invisíveis.

 

 

PARTE III

A grande desgraça do desenho (e particularmente muito difícil de entender nesse miserável tempo em que vivemos) é que ele usa RES, e RES se deixa ser usado por ele, não existe mais RES, não existe mais Rubens Espírito Santo nem para ele mesmo, não existe essa identidade, ela é entregue ao devir que veio cumprir nessa Terra, ou que, para tentar ser mais material, entrega-se a ser mesmo somente uma criatura, parte integrante dessa tragédia: deixa de ser insignificante ao voltar a ser somente um ínfimo da realidade: qual outro significante além desse? O modo como RES salva-se de sua insignificância é entregando-se mesmo à ela, para que o ser insignificante ganhe tal forma, tal força, tamanha dimensão de lucidez de desidentificação, que volta a ser somente um sopro de vida que veio articular-se por ele. Ou mesmo esse “por ele” nesse contexto não faça mais sentido, pensar dessa forma já é cindir as coisas. Ele mesmo é esse sopro de vida, nós somos um sopro de vida de coisa que veio à existência, rompeu com a latência dessa existência de nós mesmos para existir, então por que há a cisão, meu Deus? Talvez a cisão seja o que faça a coisa ter charme, é o que gera a graça, é o que insufla a vida de beleza, se soubéssemos da vida o tempo todo não haveria vida para se maravilhar, a vida seria um tédio permanente ou um gozo permanente, e assim, deixaria de ser também qualquer uma dessas coisas. Quem sabe a maravilha da vida seja mesmo que ela será sempre maior do que nós para que nós nos seduzemos por ela. A desgraça está em não termos mesmo escolha, está em nos darmos conta de que a consciência é um campo de concentração do qual nós somos prisioneiros, prisioneiros de uma vida que espera por nós, nós não podemos esperar nada da vida, ela é quem nos espera. Sendo assim, o desenho de RES, Dedicado ao Fedro de Platão é a desgraça da vida, sendo a desgraça a maior maravilha que temos, a de ser uma antecedência de nós. O desenho é um grande senhor que impede que RES deseje, não há mais desejo no desenho, existem ordens, existe o próprio caminho de condução que ele mesmo ordena RES a seguir. Não se trata mais de plástica, não se trata mais de arte, de desenho, de nada do que podemos nomear, já que o desenho é o que nos nomeia, e desesperados, tememos ouvir a enunciação, a proclamação de nós mesmos que essa criatura declama. E mesmo que quiséssemos, estar diante desse desenho já é o suficiente para que se inicie um eco em nosso ouvido desse nome sendo proferido. Estar diante do desenho, mesmo que por um segundo, já é tempo suficiente que ele precisa para infiltrar-se no mais minúsculo poro de nossa pele e fazer de nosso corpo sua morada; (por isso que colecionar é algo tão sofisticado, uma vez que a grande obra de arte coleciona a nós constantemente, nos assalta de nós, e ter pertencimento mesmo de uma obra, é entrar em negociação com esse assalto), este, acredito, é o poder de uma obra de arte, despertar e acumular a dívida da vida que nos espera.

 

PARTE IV

Existe um momento onde claramente a matéria parece ceder a RES, ceder à sua vontade, mas me pergunto, que vontade é essa? O que mesmo esse momento, o que acontece nesse momento? O que significa a matéria ceder? Acredito que tenha a ver com um pacto, uma grande negociação, onde RES precisa provar à matéria quem é que está a implicando, e para provar isso, não se pode haver desejo algum, ele não pode esperar nada da matéria, ela não pode sentir qualquer resquício do desejo de Rubens, o que RES tem que fazer, é despossuir-se por completo de seu desejo, despactualizar-se com toda a sua erudição, e vir a negociar com a matéria enquanto também matéria. A matéria tem que sentir que Rubens é um igual, tem que saber que sua implicação é impessoal, que Rubens é somente o mensageiro de uma implicação, é somente um veículo de tal implicação. Neste momento, a matéria cede, e RES parte a articular-se nela, pode então realmente enlaçar-se nela, onde a matéria e Rubens, só aí, voltam a tornarem-se um, um corpo somente, nesse momento instaura-se o diálogo, mas para haver diálogo, é preciso uma exaustiva construção de confiança entre ambos, onde fica claro que um não deseja nada do outro, os dois precisam vir a existir juntos, como coisa só.

 

PARTE V

Sobre a pós batalha de vida e morte – falar sobre a luta pela vida de RES no desenho, o que está em jogo é sua sanidade.

Mas do que se trata isso? Que sanidade é essa, como não dizer o oposto? Por que um homem que passa três horas desenhando diz estar lutando pela sua sanidade? Gostaria de focar nessa palavra, sanidade. No desenho Rubens luta por uma sanidade, sanidade de sair de uma alienação dele mesmo, ou, poderíamos pensar sanidade também enquanto um estado de estar mesmo a serviço de algo, de deixar-se agir como as ondas do mar que são movimentadas pela Lua, ou mesmo a Terra em relação à Lua, o giro da Lua em torno da Terra é feito por conta de uma inteligência da mente da Terra, a Terra em si tem uma mente, a Terra em si pensa, e isso destrói imediatamente qualquer vulgar ideia de que nós pensamos, do que é “pensar”, e algo parece ficar mais claro em relação ao momento em que se percebe “sendo pensado”. Acredito que lutar pela sua sanidade seria na verdade lutar para deixar de pensar, e ser pensado, ser pensado pela mente do planeta, se deixar ser um instrumento, um órgão de um corpo muito maior do que ele. Acredito que isso refere-se a uma sanidade que RES busca em desenhar. Onde o oposto de sanidade aqui não seria a loucura, aqui o oposto de sanidade seria a autonomia. RES deixa com que a mente da Terra conduza as suas ações, e assim, só assim, pode voltar a ser são.

Parece uma grande contradição mas de algum lugar que desconheço profundamente em mim, sei que não é, sei que essa sanidade se trata de um abandono profundo, de um abandono, finalmente um abandono de si, é uma luta feroz contra a matéria de si mesmo, que quer resistir, tão erudita quer estar no controle, quer ser maior, quer se sentir significante, é uma grande batalha em direção à sua própria insignificância: eis aqui a vitória da batalha de RES, eis a sanidade que Rubens busca nessa saga: a insignificância. E quando a matéria cede à vontade do artista, o que estamos dizendo é que o artista cede à vontade do tempo, cede à vontade do que algo quer dele enquanto homem.

 

Reflexões de Anna Israel sobre a Cabana Garrapata de RES em Barcelona

15 de Fevereiro de 2017

 

Registro da cabana Garrapata.
 
 

1ª parte

De onde nasce uma palavra? Por que o medo tão grande em escrever, a mergulhar na trama sem forma do pensamento, da angústia, e deparar-me com as limitações evidentes de mim mesma existindo para fora da cabeça? Escrever sobre a cabana é um modo de enfrentar os lugares inóspitos de mim e dizer algo que não posso dizer, e então, esse dizer me sufoca, encontro nessa saga aquilo que mais temo encontrar: minhas próprias limitações – encontro nessa saga aquilo que tanto me oprime, minha fragilidade, e assim, desse modo, nesse encontro começo a poder ver com um pouco mais de claridade a cabana, uma palavra que se suporta para fora de seu sufocamento, uma palavra sangrenta em carne viva, a fragilidade de Rubens em manifestação, um judeu encarando um nazista e afirmando que é judeu. Uma palavra que precisa existir, que utiliza Rubens enquanto o seu transmissor, seu agente, agencia-se através de R.E.S., ou mesmo, R.E.S. se doa à existência da mesma, e doar-se a esse algo tem a ver com enlaçar-se, emaranhar-se na sua própria lama, atirar-se no abismo da insuficiência. A entrega a esse abismo da insuficiência é o ponto de partida para que algo possa começar a ter um motivo para existir – as soluções só começam a aparecer quando o problema se torna insustentável, e entregar-se a esse insustentável não deixa de ser uma aposta, não deixa de ser um suicídio, onde o homem deixa de ser o grande protagonista de sua vida, e entende que só pode ser um mero escravo da vida que lhe atravessa.

Se não houver sujeira, se não houver incomodo, se não houver profunda agonia, a palavra permanece em sua superficialidade, a serviço de nada, uma palavra vazia, uma imagem vazia, viver para sempre na superfície de si mesmo e com a equivocada ideia de que pode-se ser um inventor. Quem sabe não haja mesmo tal coisa, inventor é aquele que de tanto se expor ao seu intransponível, de tanto nadar em direção à sua miséria, transfigura-se em receptáculo e dispositivo para a invenção, o inventor é então somente um canal para que a invenção se dê através dele, e essa invenção se torna o oxigênio para poder respirar debaixo d’água, isto é, “invenção” é uma palavra vazia, o que acontece é o nascimento de algo, de uma solução para uma exigência vital. As coisas precisam de um motivo real para serem inventadas, para se encontrarem em sua trama inventiva, a palavra precisa de recursos reais para encontrar o seu motivo para sair de uma latência. Se não houver uma exigência para que algo se construa, não há possibilidade de invenção nenhuma. A cabana é uma junção de submeter-se ao mais trágico de si mesmo, expor-se ao seu sem saída, compactuar com a zona cinzenta de si e ao mesmo tempo fazer disso uma atividade, uma batalha, uma saga, um pacto com a faísca de vida que há em nós.

Com a obra de R.E.S. me fica evidente que a produção se torna a sua entrega à vida enquanto uma entidade própria, Rubens é um grande trabalhador que trabalha em nome de ser esse dispositivo para que sua palavra possa encontrar o canal de existência através dele, para fora dele.

Não há como fazer nada sem submeter-se às suas limitações, ao seu impossível; a cada limitação, a cada esmurro em uma porta de ferro, vão se criando marcas, e assim com o tempo rachaduras, e um dia, a porta se arromba – é assim que vejo R.E.S., e me pergunto: como um homem pode suportar sua própria porta arrombada sem se arrombar junto? Como ser um corpo vivo inteiro arrombando? O que me pergunto, muito intimamente é: como Rubens pode dar o testemunho e permanecer vivo, como uma obra pode conter tamanha contradição em ser ao mesmo tempo um suicídio e a a mais genuína forma de vida possível? 

Rubens, é um corpo arrombado intacto, em pé, a cabana é o espaço que criou para poder negociar com o Diabo, para manter o Diabo bem próximo dele, R.E.S. constrói uma cama, uma beliche, pra que o Diabo possa se deitar em baixo dele e sentir-se confortável, R.E.S. constrói uma morada para o Diabo, uma arapuca para mantê-lo por perto, e paga um alto preço por isso… Paga o preço de não haver mais contradição, onde a contradição é uma palavra para aqueles que não veem, para os que choram por uma insuficiência – hoje Rubens chora por uma suficiência, por ter os olhos demasiado abertos, para ele não há contradição, não há caos, o suposto caos é o equilíbrio, é a morada do Diabo, quem sabe seja por isso que tão poucos a suportam; para se suportar a contradição, é necessário criar um mundo que a sustente, é necessário uma configuração, uma estrutura óssea suficientemente forte para dar corpo à algo que é só movimento. 

2ª parte  

A palavra não se inventa, a palavra é uma exigência, uma demanda, um grande bicho amorfo que hiberna no homem, que grunhe para adquirir forma, que grunhe pois, grunhir é por hora sua única forma de existir através do homem. R.E.S. não inventou sua palavra, mas a palavra é que o inventou, de tanto provocar esse bichão, tanto resistir à inércia, de tanto resistir à opressão da manifestação, como um guerreiro, entra em um mar, em uma tempestade em alto mar com seu grande equipamento de guerra e enfrenta a aridez da sua própria solidão, da consciência de sua incompletude, da consciência de suas limitações. A cabana, os desenhos, grandes, pequenos, textos, conversas, articulações, são todos o mesmo, são todos um universo de leis construído por R.E.S., uma só cabana, um só mundo dentro do mundo, mas não um mundo fechado, senão um mundo rizomático, um mundo com tentáculos, tentáculos conectados ao solo, que se alimenta da água que corre por baixo do solo, da terra, da água oprimida pelo frio da Catalunha, um frio que nada tem a ver mais com a temperatura, mas um frio de algo que está sendo deixado de ser feito, algo estancado, algo engasgado no tempo em que vivemos: a cabana assalta o catalão, assalta em 10 dias uma tradição já em ruínas que não nos serve mais para nada – a tradição cultural, erudita, genética, pouco importa, não podemos viver mais da história dos nossos antepassados, não podemos deixar o sangue dos nossos antepassados estancados em nossas veias, R.E.S. destrói as verdades, as falsas verdades que configuram um cenário de atrofia do homem nos dias de hoje – suspende os objetos de uma configuração predatória do homem, que o coloca imediatamente enquanto senhor, senhor de qualquer coisa, a Cabana des-hierarquiza o homem e devolve sua insignificância, ou seja, sua mais íntima identidade, e assim algo pode começar a ser construído.

 

Pequeno relato sobre a experiência de presenciar a encomenda

Depois da sessão de desenho de sexta de Rubens Espírito Santo
24 de fevereiro de 2017
 

Vendo R.E.S. trabalhar, me dou conta, considerando a velocidade de seu pensamento prático, a velocidade com que ele adquire soluções, com que ele busca novos utensílios de guerra, novos instrumentos de batalha, instrumentos, armas que o salvam em uma batalha, as soluções vem, não como “soluções plásticas”, mas como soluções que realmente o salvam de não ser derrotado, derrotado por ele mesmo, pela sua insuficiência, ele quer poder ser derrotado pela suficiência, pelo fracasso em construir uma obra que será maior que ele mesmo, o seu fracasso se torna, não em não ser capaz de produzir, mas o de produzir algo que é maior que ele. Ou então, voltando a considerar o próprio modo como age, me dou conta de que ele mesmo, com tantos assistentes, é um assistente, Rubens recebe ordens e as segue, é como uma antena que capta sinais, se instrumentalizou para poder colocar esses sinais no mundo, criou todos os artifícios necessários para que esses sinais existam para fora da latência. Esses sinais, ou, o seu desenho já existia antes dele, já existia antes de ser feito, mas Res gerou um espaço propício para que o desenho pudesse existir em outra ordem de existência, existir enquanto o que ele se apresenta diante de nós – é mesmo um ato generoso, o de fazer algo que já existe (mesmo que escape nossa visão), para esse mundo, matérico, como mesmo uma encomenda. O desenho é uma encomenda que passa por R.E.S. para existir, R.E.S. é o veículo de existência dessa encomenda, é o carteiro, que busca a encomenda em um lugar e o leva para outro, R.E.S. busca o desenho no kairós, em um espaço invisível que se encontra entre ele e o papel, e o traz para a natureza, e assim, irrompe as distinções entre esses mundos, entre os tempos, o desenho se torna justamente a fresta, a possibilidade de reunião desses dois mundo, que na verdade estão cindidos enquanto “dois” por uma crise espiritual do nosso tempo. Talvez esse possa ser um termo a se pensar, o artista enquanto o carteiro, que recolhe a carta em um banco de dados e de códigos e de leis próprias e a traz para outras leis, para outra esfera, outra galáxia, ainda que essas duas galáxias sejam a mesma, o carteiro faz o trabalho sujo de transfigurar uma coisa para outra, transformar um código amorfo em matéria, mas matéria também amorfa, ou seja, a coisa não deixa de ser o que ela já era, mas agora se apresenta encarnada no desenho diante de nós.

 

E então essa encomenda passa a existir dentro do universo plástico, cultural, temporal, social de R.E.S., assim como foi com Cézanne, ele foi o veículo de existência de sua pintura, e é aí onde ambos, R.E.S. e Cézanne se encontram, a primeira camada do desenho pode representar ou situar o artista em uma história cronológica, mas depois dessa camada, os desenhos dividem o mesmo sítio histórico anacrônico. A primeira camada do desenho é o artifício que sustenta o desenho que na verdade é o que situa-se entre o anteparo da pintura de Cézanne e o desenho de R.E.S. – entre esses dois encontram-se ambos. E como o Rafael Chvaicer muito precisamente falou, “R.E.S. fez algo que Duchamp gostaria de ter conseguido fazer: eliminar a mão do artista, através da mão do artista” – a mão de Rubens é somente um instrumento, como mesmo disse antes, um canal, um dispositivo de ação de algo que não é dele. A questão então é investigar qual o trabalho para poder se despossuir de tal forma, e só então nessa despossuição, poder estar em devolução de si mesmo. Benjamin em sua passagem sobre o colecionador diz que um colecionador pode ter muitos objetos, mas isso não significa que ele os possui. Rubens ao abrir mão de se ter, é possuído por ele mesmo – e sabe que ele mesmo não lhe pertence. 

 

Suposições acerca do que consiste a angústia de RES em não perder para o papel

 
“(…) e ainda, que se poderia sonhar com o que seria um ensino de alguém que não teria as chaves de seu próprio saber, que não o arrogaria. Ele daria lugar ao lugar, deixando as chaves a outro para desencravar a palavra”
Anne Dufourmantelle1


O papel em questão não se trata de uma superfície branca, o papel que Rubens odeia perder ou que não pode perder, é um papel designado pela vida a ele que ele já negociou de antemão, é um papel quem ele deve, que está em dívida, e tem de pagar. Perder para o papel seria ser leviano ou preguiçoso ou infiel à sua própria palavra – Rubens cava diariamente o próprio túmulo, cria problemas para justamente não poder fugir deles, faz afirmações para poder prová-las, a palavra não é uma palavra para Rubens, como é comumente, mas a palavra se tornou ou retornou a ser sua própria carne, sua vida, a palavra proferida por RES não é RES que profere, mas é a palavra que se profere através de RES, é a vida que RES carrega que encontrou na palavra um modo de existir enquanto display, enquanto coisa, e assim a palavra deixa de ser palavra e retorna para sua origem de ser pulsão, volição, espírito. RES ficciona a vida de tal forma que em um determinado momento sua vida já se confundiu com essa ficção, não há mais como discernir a ficção da realidade, Rubens tem uma dívida com a ficção que inventou: de tanto ficcionar, a ficção se tornou sua própria realidade, sua condição de existência, a ficção se tornou quem é, a ficção movimentou sua estrutura óssea, alterou a cadeia de seu DNA, e agora não tem mais volta. 

Muitos comentários permearam a falta de cansaço de RES em relação aos demais na sessão de desenho. Não consigo enxergar dessa forma, não acredito que RES estivesse necessariamente menos cansado do que qualquer um naquela sessão de desenho, na verdade penso que muito provavelmente RES era o mais cansado de lá, mas ele inventa esse espaço ficcional nele mesmo, subverte o uso comum que fazemos do cansaço, e o transforma em motor de arranque do desenho, assume o cansaço e o utiliza para desenhar – assim como Artaud2 que entrou nas vísceras do “não ter nada para dizer3 como ponto de partida para sua obra, Rubens entrou nas vísceras do seu corpo cansado no final da tarde da sexta feira, para poder utilizar o ácido no suco do cansaço para se movimentar, como matéria prima, como partida. Entra em outra ordem de seu cansaço, em um espaço secreto do cansaço, entra na intimidade do cansaço, talvez para mergulhar no espaço de suas regras  e não ser mais conduzido pelas regras, para estar em diálogo com as regras, e talvez para levar o rigor do cansaço, a autoridade do cansaço para ser a autoridade do gesto no desenho, o rigor de sua implicação com aquela superfície resistente ao ponto em que o desenho possa conter as regras do cansaço, ao ponto em que o extremo de um aprisionamento possa vir a ser um tropeço na liberdade de si mesmo. 

É como tudo em sua vida: perverte as leis comuns das coisas, e de tanto pervertê-las, com o tempo, as outras possibilidades latentes das coisas vão surgindo. De tanto insistir no cansaço, de tanto suportar não fazer imediatamente o que o seu corpo está condicionado a fazer com essa informação do cansaço, o cansaço abre-se e revela-se um agente químico poderosíssimo para muitas outras coisas além da resposta do sono, do repouso. Nosso corpo é um organismo precioso, possui infinitos tipos de inteligência que acessamos muito pouco, e Rubens quer invocar justamente isso, abrir mão das respostas que estamos condicionados a dar ao nosso corpo, e assim deixar com que o corpo possa operar em um tilt, e assim ver qual a resposta que o corpo dará a essa provocação. Como um tabuleiro, onde as peças estão sempre organizadas de uma forma, Rubens já parte subvertendo uma organização para ver como pode prosseguir o jogo sobre outro ponto de vista. Subverte um tipo de display do seu corpo, subverte um tipo de display do seu tempo, para invocar outras possibilidades de respostas em latência, para devolver à vida uma riqueza esquecida. 

De tanto, por tanto tempo ter inventado esse espaço ficcional de subversão do display das respostas às coisas, que agora ele tem uma dívida com sua invenção, tem uma dívida com seu ser, com seu outro, com seu poder, não há mais volta, despertou latências de si e agora paga alto por elas. É sempre muito mais agradável pensarmos que não podemos, a questão é que RES ao longo de sua vida afirmou que podia em praça pública e assim criou uma dívida com esse poder. O poder é um ávido cobrador. 

E assim cansado, um escravo desenha um furgãozinho em um papel, humildemente, depois de uma longa semana, para que o furgão possa finalmente o conduzir para o caminho que ele há de ir nessa sexta feira. Circunscreve um espaço para que o acontecimento possa surgir. Eis o lugar onde Rubens quer chegar. Temos uma ideia de chegada que diz respeito a um fim, a um destino, a um término, enquanto para Rubens, a ideia de chegada é enfim o começo, a chegada é quando o corpo cansado de tanto ser provocado, vira-se aquela outra coisa que será para sempre desconhecida para aqueles que vão para casa simplesmente descansar; a chegada é quando Rubens sente um novo corpo apropriando-se dele e rasgando sua antiga pele para fora, o desenho só começa nesse estágio, e para se chegar a esse estágio, é necessário um reservatório de fôlego, um fôlego construído por anos de uma vida, por décadas de gerações.

De tanto ficcionar, de tanto criar artifícios, técnicas, instrumentos, mecanismos de viver essa vida de forma simplesmente diferente, uma hora, o motivo por trás da ficção, a volição ficcional o ficciona, invoca-se em RES, uma hora Rubens deixa de ser o sujeito da ação de ficcionar e se torna o objeto que sofre a ação da própria ficção que ele despertou, nele mesmo. É como um bicho que estava hibernando, e Rubens o acordou, e agora o bicho quer algo de RES.

Ele se torna uma ficção, ele se transforma naquilo que o leva a desejar ficcionar, se transforma naquilo que deseja a invenção. De tanto inventar um mundo, em um determinado momento, Rubens é recebido diante de nós por outro mundo, não o que ele estava inventando mas o próprio mundo que situa o desejo da invenção.

No abismo, ou você navega ou naufraga. Nesse lugar em que RES se encontra, no risco em que se colocou, perder então para o papel seria o equivalente à morte, já que o papel é o único corpo com o que hoje pode contar para existir. A cada sessão de sexta abandona seu corpo por alguns momentos e confia no papel, nessa jornada que passa pelo papel, o seu corpo por vir. Por algumas horas Rubens se abandona, se joga em um abismo para poder se resgatar então em um desenho que ainda não existe, e nesse salto, no vazio do abismo, resgata o desenho, e este é também esse novo corpo para se manter vivo. Mas aquele que salta tem que estar instrumentalizado para sentir o momento em que a faísca finalmente vira chama dentro de si, e a chama o chama, o convoca, elege enfim aquele que vai ser o veículo de seu calor.

 

Notas:
1 DUFOURMANTELLE, Anne. Da Hospitalidade: Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade. 1a Edição. São Paulo: Editora Escuta, 2003.
2 Antonin Artaud (1896 – 1948) – poeta, escritor, dramaturgo, e ator francês.
3 Richard Diebenkorn (no livro, “The Ocean Park Series”), Notes to myself on beginning a painting: 1. Attempt what is not certain. Certainty may or may not come later. It may then be a valuable delusion. 2. The pretty, initial position which falls short of completeness is not to be valued – except as a stimulus for further moves. 3. Do search. Best in order to find other than what is searched for. 4. Use and respond to the initial fresh qualities but consider them absolutely expendable. 5. Don’t “discover” a subject – of any kind. 6. Somehow don’t be bored—but if you must—use it in action. Use its destructive potential. 7. Mistakes can’t be erased but they move you from your present position. 8. Keep thinking about Pollyanna. 9. Tolerate chaos. 10. Be careful only in a perverse way.

Mapeamento de alguns pontos fundamentais sobre a cabana Frei Otto de Res na FAMA em Itu

Anna israel
5 de setembro de 2018
Esboço de questões fundamentais que envolvem a Cabana Frei Otto enquanto objeto de arte contemporâneo.

 

Cabana Frei Otto – Itu – FAMA, 2018 – RUBENS ESPÍRITO SANTO
 
Cabana Frei Otto – Itu – FAMA, 2018 – RUBENS ESPÍRITO SANTO
 
 
  1. O “Frei Otto” da Cabana: homenagem a um arquiteto alemão que desenvolveu uma tecnologia específica para estruturar uma forma. Como a Cabana, Frei Otto não tinha interesse em desenvolver uma forma, isto é, sua pesquisa não se trata da fundação de um objeto finalizado, não se trata de um percurso para finalmente chegar a uma forma, mas quase que ao contrário, a forma serve como engate, como dispositivo para que uma tecnologia, uma estrutura seja criada. Frei Otto quis desenvolver uma estrutura que fosse capaz de sustentar, por exemplo, a leveza e a impermanência de uma bolha de sabão flutuando no ar. RES me parece estar querendo constantemente com sua obra, e com suas 20 cabanas, criar uma estrutura possível que possa sustentar a contradição do homem – de forma não determinística –, criar uma estrutura capaz de sustentar o nosso estado de constante movimento, o estado de impermanência do homem, criar uma tecnologia para uma forma que abrigue o homem, porém não o aprisione, um respiro para um ser já aprisionado; uma estrutura possível para ser a morada de um ser humano. Nesse sentido, a estrutura-morada não se trata da Cabana enquanto objeto, enquanto algo que habitamos, mas a Cabana se torna o display para a estrutura na verdade do próprio homem: a Cabana em questão não é a obra supostamente finalizada, mas a obra é uma atmosfera; a obra me parece um dispositivo para que a Cabana de cada um seja construída.
  2. Aspecto político da Cabana, isto é, a obra como um espaço-dispositivo que gerencia e governa a partir das próprias leis que aquele espaço instaura, a partir, inclusive, de uma carência espiritual que vivemos. Por isso, há aqui uma reunião essencial entre a política e o espírito. Sobre sua construção, por exemplo: 15 jovens passaram a semana inteira construindo a Cabana, em teoria enquanto “assistentes de um artista” (foi uma fala que ouvi mais de uma vez nesses últimos 4 dias). O que há de profundamente interessante na própria manobra da Cabana é que esses jovens, através do dispositivo da Cabana, estavam trabalhando na verdade para eles mesmos, estavam construindo não a Cabana de Rubens Espírito Santo na Fábrica de Arte Marcos Amaro, mas iniciando a construção de suas próprias Cabanas. Aqui me parece que há uma política realmente direcionada para o outro, sem a ingênua ideia de um altruísmo, mas entendendo o outro como na verdade um modo de acessar a si mesmo.
  3. Ao não estar interessado na forma, mas no desenvolvimento de uma tecnologia que possa sustentar uma forma, posso concluir aqui que há claramente uma superação de uma arte moderna que se apresenta, apesar de fingirmos que não, ainda não superada até os dias de hoje. A Cabana é o início de algo; é uma obra que não se finda em si mesma, não existe como sua própria finalidade. O que quero dizer com isso: há aqui um esgotamento da ideia da mídia, ou ainda, aqui o esgotamento da mídia não é a finalidade do trabalho de arte. Rubens, com a Cabana, claramente não está interessado com uma questão “autoral”; a ideia do “novo” não está circunscrita na “novidade da mídia,” mas o novo está justamente em entender que um procedimento, uma epistemologia, um approach com o fazer tem que ser outro – um tipo de approach foi esgotado com a arte moderna, inclusive foi esfaqueado por Duchamp, ainda que não tenhamos inferido sua obra com sucesso até hoje. Mas, com isso, vejo a Cabana como uma possível inauguração disso que chamamos do “contemporâneo”, isto é, o início de um caminho sem estar carregando um peso morto nas costas. A Cabana é fresca. A Cabana não tem rabo preso, tem sua “ficha limpa”. A mídia, no caso, instalação, pintura, escultura, fotografia, desenho, na Cabana é somente um recurso – a mídia é somente uma tecnologia para que algo seja possível, para que algo possa ser consumado, para que a obra de arte volte a ser consumada, e não consumida pela carência daquele que se coloca na posição de espectador e quer obter algo dela.
  4. Consumir x consumar. É apresentado um dado bastante significativo sobre o modo estéril com que nos relacionamos hoje em dia com o objeto de arte. Não parece haver mais um envolvimento visceral com o objeto. A cabana apresenta uma solução para uma relação obsoleta da “obra x espectador” com o sujeito. A cabana destrói o nome “espectador” daquele que se relaciona com ela, e dessa forma ela obriga que outro nome seja inventado, ainda que não saiba dizer que nome é esse, a relação de “obra x espectador” é defasada com a existência da Cabana. O próprio display do museu me parece obsoleto. Mas quais são as possibilidades para uma cultura ocidental de transcender o display obsoleto do museu? A Cabana me parece uma solução para essa questão onde, apesar do trabalho estar supostamente instalado em uma fundação de arte, ele provoca a própria concepção do que é uma fundação, provoca o acervo, provoca os demais artistas, intimando aquele que passa por ela a conhecê-la, e não a entendê-la. Ou seja, a Cabana se torna um outro não necessariamente excluído do sujeito, mas um outro do próprio sujeito que ele pode vir a conhecer. A Cabana, apresenta uma manobra muito interessante enquanto ruptura de uma ideia cindida de “arte ocidental” e “arte primitiva”. Não há quem negue que esta obra está inserida no contexto da estética ocidental, isto é, podemos inferir que Rubens assimilou a história da arte ocidental. Mas em termos de acontecimento, de display, da relação sujeito x objeto de arte, a Cabana me parece travar uma relação, ou implicar uma relação com o sujeito, muito próxima da relação sujeito-obra dos objetos de arte primitiva, onde o objeto de arte está a serviço de algo muito maior que ele, está a serviço de um acontecimento.
  5. Ressignificação da ideia de “dentro e fora”. Rubens leva essa questão para um lugar bem pouco literal ou alegórico, onde a Cabana não se trata de um espaço que está dentro da fábrica, mas consegue transvestir a fábrica para que a fábrica passe agora a estar dentro da Cabana. Rubens sutilmente revela, através de manobras plásticas, espaços externos à suposta “Cabana”, fazendo com que, dessa maneira, fique ambíguo qual o espaço mesmo que nos referimos quando nos referimos à Cabana. É provocada essa relação de avesso com a fábrica e em última instância, de avesso com nós mesmos, expondo o sujeito à ele mesmo e às suas carências.
  6. Construção por negatividade: hoje não há mais lugares possíveis para serem construídos, ao menos não na epistemologia do que é uma construção que havíamos no passado. Em um beco sem saída ou você morre ou você inventa uma saída. Segundo o filósofo Giorgio Agamben, a única saída para construirmos algo hoje é através da negatividade. Nesse caso, pequenos detalhes da fábrica, do espaço, da própria estrutura da Cabana são evidenciados não de forma construtiva, mas através de uma desconstrução de algo: apagando um elemento, outro elemento pode ser evidenciado. Há uma parede inteira composta com buracos que foram preenchidos com massa corrida, e bem no topo da parede, pedaços de madeira, madeira bruta e uma madeira pintada de preto. Como não há como competir com o construtivismo russo, através do display do construtivismo russo, RES, através de um pequeno foco de luz apontando para essa parede supostamente irrelevante, faz uma homenagem imediata aos seus mestres, àqueles que o conduziram pelo caminho da plástica quando jovem – aqui há uma construção através da negatividade.
  7. Retorno de uma ideia de arquitetura enquanto a construção do espaço interno de um sujeito através da construção de sua habitação, onde sua habitação não é o espaço onde ele dorme, mas é o corpo que ele mora.

 

RES, a Loucura e a Nave

 
Organização de alguns pensamento recentes
Anna Israel
08 de fevereiro de 2019
 
Todo texto ainda requer muitas considerações – muito estudo. Este texto é ainda um esboço.
 
 

Parte 1

O que mesmo está sendo dito quando se diz que RES é um louco? Gostaria de refletir sobre essa afirmação, considerando especialmente que a palavra louco é uma palavra eminentemente ocidental. Uma vez que RES tenha construído o seu próprio mundo, sua própria cultura, esse conceito não mais me parece fazer sentido, esse conceito parece perder sentido dentro de seu contexto1 – e é isso, justamente, o que salva RES de realmente “não poder mais voltar”, como um “louco de hospício”, já que, apesar de ter ido, ele também concomitantemente, não saiu daqui2.

Tenho me interessado muito em refletir sobre as estruturas psíquicas, sociais e econômicas de outras culturas, de culturas primitivas, por exemplo – como se dá a psiquê de um aborígene? Como são as relações maternas e paternas de um Hopi? Qual a relação da esquematização de Freud da psiquê do homem ocidental com leis ocultas do universo? Onde Freud encontra Jung? Qual a relação da trieb, da histeria, das ninfas, da esquizofrenia, Warburg, Nietzsche, Hölderlin, o canto da sereia, o incesto, que pulsões são essas? Como desenvolver novos displays para essas pulsões tão enigmáticas do homem? Como outras culturas lidam ou colocam tais pulsões? Para o homem civilizado, teleológico, maniqueísta, determinístico, o seu “descontrole” ou a sua “ninfa”, sua “loucura” fere brutalmente as leis de sua sociedade, fere a ordem de sua civilização – civilização esta que está enraizada em sua ossatura, diria ainda que é como uma civilização psíquica; a ninfa fere o modo como o homem está organizado psiquicamente para viver nesse mundo, para viver as demandas “comezinhas” de seu tempo. Qualquer coisa que escape às leis ocidentais de um tempo enlouquece o homem, não sabemos mais o que fazer com a nossa contradição – não temos espaço em nossa casa para a ninfa, por isso, quando ela chega, ela chega arrombando tudo, destruindo todos os cômodos; quando a ninfa aparece, evidentemente, como não há espaço, ela destrói tudo que a impede de existir, e como sabemos disso, pois a ninfa habita dentro de nós, hiberna em nós, obviamente sentimos medo e fazemos de tudo, não para organizar os cômodos da casa para receber a ninfa, mas fazemos de tudo para evitar qualquer tipo de possibilidade que a ninfa entre na casa. A ninfa porém é muito mais inteligente do que nós, ela vai entrar hora ou outra, de qualquer jeito.

Mas me pergunto, por que então que um índio Hopi não enlouquece? Por que um Hopi pode se submeter a rituais, como o ritual da serpente3 e não “enlouquecer”? Como é que um índio Hopi convive tão bem com a ninfa sem “enlouquecer?”

O que homens como Warburg, Nietzche e Hölderlin (os três, curiosamente, grandes gênios alemães) apesar de terem sido possuído pelas ninfas, apesar de terem entrado em lugares realmente surpreendentes deles mesmos, e terem isso datado, o que eles não conseguiram gerenciar e terem morrido na “loucura”, ou, poeticamente, terem tido suas casas arrombadas completamente pela ninfa? O que distingue um Hopi de Warburg e o que aproxima RES de um Hopi?

Sem duvida há algo que RES construiu que aparentemente o salva da loucura – apesar de que eu não diria aqui que ele se salvou da loucura, é justamente essa epistemologia que quero inverter, esse modo de articular o problema que eu quero ressignificar, pois Rubens não se salvou de nenhuma loucura, mas a transformou em algo que faz parte constituinte da gramática diária de seu corpo, abriu um espaço para a loucura em seu corpo. Então o que fez, não foi se salvar da loucura, não foi não estar na loucura e mesmo assim ser possuído pela ninfa, mas o que RES fez está mais próximo das bordas, está mais próximo de uma organização profunda dos espaços de sua casa para que a ninfa possa entrar pela porta, e não ter de arrombá-la; RES se interessou pelas bordas, pelas cercas, pela estratégia de alcançar algo. RES passa quase todas as horas de sua semana construindo um ambiente favorável para a loucura dentro de sua casa – de seu corpo –, alterou as leis de sua própria civilização psíquica e estrutural, cotidiana, de forma que hoje é um homem que vive na cidade, mas transformou todas as leis de sua cidade em leis de sua tribo. Não podemos esquecer, porém, que toda tribo exige seus sacrifícios – e é dessa forma que RES articula sua vida, é disso que se trata sua organização, também para entender quando algo precisa ir para outra coisa poder nascer. Assim como um Hopi, RES levou de volta as leis de seu tempo para leis regidas pelo imediato4, e a partir dessas leis, articula suas decisões tão enigmáticas (e aparentemente muitas vezes contraditórias) cotidianas. Por isso, podemos pensar que RES vive na cidade, mas a cidade em que RES vive não é a mesma cidade em que vivemos.

Mas se a condição de ir é não retornar5, como é possível RES ir e voltar ao mesmo tempo? Como é possível estar em dois lugares ao mesmo tempo6?

RES construiu um lugar que em si não tem retorno, então não há assim perigo de não retornar mais, já que ele já está no sem retorno, está aqui mesmo em seu lugar sem retorno; assim, não precisa sair de um lugar para ir a outro – ele já se encontra, a todo tempo em outro lugar. A questão configura-se de forma lógica. Ele já renunciou um lugar antes mesmo de ir, por isso ele pode sempre voltar e nunca voltar, ao mesmo tempo.

Dessa forma, podemos dizer que Rubens não é um louco, mas é um selvagem, um selvagem que também é um intelectual, um selvagem que tem conta no banco, um selvagem que possui uma biblioteca, que tem 30 alunos, um selvagem ocidental. Dizer que RES aproximou mundos significa dizer que ele feriu as fronteiras de diferentes civilizações para que elas pudessem coexistir, ou ainda, para que um novo homem pudesse ser criado, assim também pensava René Char quando escreveu que “os homens de Lascaux e suas pinturas poderiam ainda revelar milhares de “coisas escondidas” inescrutáveis, inclusive – e especialmente – para os homens enviados nas missões espaciais do século XX7”. Isto é, o homem do futuro tem que resgatar o homem das cavernas para sobreviver.

Parte 2

Que lugar sem retorno é esse que está? Como é que RES consegue estar lá, em sua torre8, e aqui ao mesmo tempo? A questão é que RES transformou o próprio “aqui” em uma outra dimensão – eis o lugar que não há mais retorno, uma ideia de “aqui” foi realmente abandonada, foi deixada para trás no caminho, foi deixada para trás para que outra coisa pudesse ser construída9; apesar de pensarmos que RES está aqui, digo, no espaço psíquico em que estamos, ele não está – não somente no espaço psíquico, mas no espaço psíquico, espiritual e também físico: Rubens transforma as atividades mais banais desse tempo em atividades que estão a serviço desse espaço outro que construiu. Utiliza de todos os recursos de nosso tempo, a economia, o espaço, Marte, as disputas na Venezuela, a ruptura da barreira em Brumadinho, Jeff Bezos, Elon Musk, o mercado financeiro, o insensibilizador Zilka, usa todos os aparatos de um tempo a serviço de sua “torre”, usa todos os aparatos de um mundo para outros fins, com os fins de um trabalho profilático para se manter vivo nesse outro mundo. Da mesma forma que um índio Hopi utiliza os recursos que há em torno dele para uma cerimônia, RES faz a mesmíssima coisa – esse é o modo que pode se aproximar do Hopi, de outra cultura, adentrando profundamente em sua própria, é o modo que ele pode ser um xamã, é o modo como ele pode receber diariamente a ninfa. RES faz o ritual da serpente não com uma serpente na boca, mas com um papel Arches na parede e uma barra de grafite na mão. Tem que ser orgânico com o seu ser, com seu tempo, a palavra só faz sentido dentro de um contexto. E RES tem um contexto muito claro para se utilizar de todos esses recursos.

 

Parte 3

RES construiu com sua obra, um novo corpo, uma nova cultura enraizada em seu próprio corpo, onde, apesar das leis não serem regidas mais pelas leis do nosso tempo, ele usa os instrumentos das leis do nosso tempo e os utiliza como instrumentos nas leis da própria ninfa – essa é sua barganha com a ninfa, essa é sua moeda de troca. Uma manobra sua muito violenta foi a de construir um ambiente favorável para a ninfa poder entrar e não destruir tudo, um ambiente onde a ninfa possa entrar, sentar e tomar um café, ainda que seja de seu modo (os desenhos feitos nas sessões de sexta são um excelente registro do “café tomado pela ninfa” a seu modo). RES construiu com sua obra uma nova configuração da morada de seu próprio sujeito, onde ele pode abrir muitas outras portas de seu ser, mas sobretudo, a obra espetacular não é somente o registro desses outros espaços de sua morada, mas também a sistematização da possibilidade da construção de um novo homem, a sistematização da invenção de um novo homem que está em latência nele mesmo, a organização da vida de forma que ela possa sempre receber visitas inesperadas e não entrar em colapso – eis o que chamamos de o méthodo.

RES vive a loucura diariamente, como um Hopi vive a loucura diariamente – dentro das leis que regem sua “civilização psíquica”; a loucura não configura-se mais como antítese de sanidade, a loucura é o seu estado diário, mas os recursos que o cercam garantem que ele não seja trancafiado em um quarto com uma maca.

 

Índio Hopi durante Ritual da Serpente e RES durante uma sessão de desenho sexta-feira
 
Ritual da Serpente e Sessão de desenho de sexta de RES
 

RES dilatou a loucura para todos os seus campos de fazer, a ninfa está solta em sua vida, a ninfa não aparece somente no desenho, no texto ou nas aulas, a ninfa aparece na sua contabilidade, na sua leitura do jornal, no seu café quando acorda, na sua organização obsessiva, a ninfa e a Sofrosyne cada uma faz um pouco o papel da outra, as fronteiras que dividiam uma da outra foram dissolvidas. Acredito que é isso a grande chave do méthodo, vejo aqui um bom modo de entender melhor do que se trata mesmo as assistências, a insistência por organização, insistências por mapas e diagramas, diagramas de metas, procedimentos, estratégias, cálculo, cuidados com o corpo, compreensão do corpo de forma dilatada, enfim, o méthodo não quer formar um “bom artista” para o nosso tempo, mas o méthodo quer fornecer recursos para construir o homem do futuro, um ser humano que possa entrar cada vez mais nas portas trancadas de si sem enlouquecer, isto é, sem que ele vire um autista, um solipsista, sem que ele se desligue desse mundo. O méthodo quer construir um ser humano que insira o seu mundo dentro desse mundo, que possa estar por mais tempo em estados de atravessamento e saber o que fazer com isso, quer construir um sujeito que possa desfrutar não somente mais da vida, mas da própria matéria de seu corpo encapsulado, um sujeito que possa saber que está sendo regido um pouquinho pelas leis do imediato. O corpo é a nossa nave e a nossa nave é a única coisa que pode nos levar para lugares impensados de nós mesmos.

Precisamos abandonar uma parte de nossa nave para que possamos continuar a nossa viagem, para que possamos continuar a nossa missão. E só com esse abandono que também poderemos retornar (e ser o que já fomos um dia).

Impressionante como as imagens são idênticas.

 

Notas:
1 Contexto aqui segundo o linguista Emile Benveniste, isto é, o contexto é o modo de significar um enunciado. Considerando o contexto que RES construiu com sua obra, a palavra “loucura” enquanto a antítese de “sanidade” não parece mais se adequar. No contexto criado por RES, a palavra “loucura” e “sanidade” deixam de se apresentar como antitheses, e passam a coexistir, como a mesma palavra. Loucura e sanidade no contexto de RES assumem a mesma função – a questão é então a de entender, que contexto é esse?
2 Gato de Schrödinger, teoria quântica criada pelo cientista Erwin Schrödinger – onde o gato pode estar concomitantemente morto e vivo.
3  Ritual da Serpente: Cerimônia Hopi em que os índios manipulam serpentes com as mãos e bocas para soltá-las em seguida e esperar seu retorno em forma de raios e chuvas.
4 A Literatura e os Deuses, Roberto Calasso falando sobre Hölderlin.
5 O muçulmano é o único capaz de dar o testemunho – mas o muçulmano não tem mais as condições de dar o testemunho – O que resta de Auschwitz, Giorgio Agamben. Pergunto-me, quais as condições necessárias para que o muçulmano possa ser muçulmano e ainda assim dar o testemunho?
6 Mais uma vez, há aqui uma profunda relação com a teoria de Schrödinger que se tornou muito importante para a física quântica: como um objeto pode estar e não estar concomitantemente? Quais as conclusões que podemos tirar de um objeto ser também a sua contradição?
7 Em A Ascensão de Atlas, Glosas sobre Aby Warburg, de Fabián Ludueña Romandini.
8 Como escreveu Lila Loula em seu texto “A Torre”, depois da torre em que Hölderlin se isolou por 40 anos.
9 Isso me faz pensar na nave espacial, que depois de conseguir, com uma força muito agressiva, atravessar a camada da atmosfera, e deixar de ter a Resistência da força da gravidade, ela tem que abandonar uma parte de sua estrutura, para poder seguir viagem – para que a nave possa continuar viajando nesse novo campo, ela precisa deixar algo para trás, só assim pode seguir viagem.

 

Pensamentos de sábado

28 de agosto de 2021

Olhando um pouco para o ser humano, para fora da janela do meu apartamento nessa dia nublado, percebo como no fundo o ser humano é comum, ordinário, como no fundo nós somos simples. Como no fundo as pessoas, em sua grande maioria, seja de São Paulo ou de Nova York, seja do Japão ou China, as pessoas só estão vivendo suas vidinha, só estão sobrevivendo à essa vida, andando com seus cachorros, batendo papo furado, ganhando um dinheirinho para poder consumar a carência com qualquer outra coisa; no fundo o ser humano é mesmo muito simples. Atravessamos essa vida sem muita ambição, sem ambição de nos perguntarmos meramente: que raios que é isso mesmo que é existir? Não no sentido de ser alguma coisa, não ambição no sentido de construir uma grande obra, ou uma grande fortuna, mas ambição simplesmente de se ter coragem de duvidar minimamente do que é mesmo isso que chamamos de vida. Não se trata mais de uma questão de opiniões políticas, de estar certo em discussões, de saber fazer perguntas bem feitas, mas meu Deus: o que mesmo que é essa chance que eu tive de poder experienciar essa contradição absoluta que é a vida? Talvez até a própria formulação dessa frase já não faça sentido diante do que estou tentando dizer. Mas se estou viva, o que é estar viva? O que é construir algo? O que é uma obra? O que é produção? O que é trabalho? O que é sanidade? O que é dinheiro? O que é riqueza? O que é uma coleção? O que é um texto? O que é política? O que é pensar? Meu Deus, o que é mesmo existir? Ou ainda, eu mesma pergunto para mim: o que eu quero com existir? O que eu quero com todas essas coisas?

Hoje foi um dia de descanso, fiquei a manhã toda sozinha, fui ao Moma, e vi uma pintura do Hopper. Talvez tenha muito a ver com essa pintura o que eu sinta de dor ao me deparar com o ser humano hoje – a pintura se chama Gás. Hopper conseguiu fazer uma coisa muito espetacular, conseguiu transformar essa simplicidade, esse estado “entre”, passageiro, de suspensão, esse estado “sem sentido”, onde o ser humano não está apontando necessariamente para uma direção, em algo poético, em algo silencioso , em algo sublime. O sem sentido de uma cena comum parece se transformar em todo sentido de uma vida. Foi como se ver essa pintura tivesse podido transformar toda ausência de sentido mesmo da minha vida no meu grande sentido. Quando digo ausência de sentido, não quero dizer que minha vida não tenha sentido, muito pelo contrário, essa pintura me fez sentir muito profundamente como a própria vida é o meu grande sentido, é a minha direção, é o meu caminho. Estar viva é o meu caminho ! Não há sentido para ser encontrado na vida, já que a própria vida é o sentido.

Além dessa pintura do Hopper, há uma pintura de Matisse que eu diria ser uma das minhas pinturas favoritas desde sempre – possivelmente desde a primeira vez que me lembro ter ido ao Moma, me lembro de ficar fascinada com essa pintura. A aula de piano. É como se Matisse realmente tivesse conseguido captar aquele momento muito particular de fim da tarde, ou meio da tarde, onde a luz entra pela sala em um ângulo muito particular e gera sombras rígidas em móveis específicos e também no rosto do menino sentado ao piano. Mas a forma como ele pintou essa sombra em seu rosto é como se fosse o próprio tempo se movimentando – a sombra no rosto do menino é o tempo passando, ele conseguiu fazer com que o próprio tempo em movimento estivesse acontecendo na face do jovem.

Há uma figura sentada atrás do jovem menino, sua professora, assim como sempre pensei. Ela sempre me pareceu como um sonho. Inclusive há uma dúvida se ela existe mesmo na pintura – é como se ela fosse um sonho do menino na aula de piano, como se ela tivesse lá e ao mesmo tempo não tivesse, seu inconsciente, seu desejo, sua imaginação… Matisse pintou somente seu contorno e o preenchimento de seu corpo deixou vazio, de modo que o próprio linho da tela ocupasse esse espaço vazio; sua presença é feita justamente da ausência de tinta aplicada na tela. Ou seja: ao mesmo tempo que a figura está lá, ela também não está, está em sua ausência, está por negatividade – há uma mancha de tinta azul em sua saia, uma figura incompleta, insuficiente, ambígua, que está e não está ao mesmo tempo (afinal de contas, também não é figura nenhuma, mas uma pintura, uma mancha e linhas com tinta, uma alusão também ao poder da arte moderna , que pode, mesmo sugerindo formas e linhas, permitir que o olho construa não somente uma cena, mas a própria atmosfera de um acontecimento).

O que acho fascinante nessa pintura é como ela sempre conseguiu instaurar uma atmosfera em mim , porque ela em si é só atmosfera, ela é justamente uma pintura, uma cena, um acontecimento que é apreendido como atmosfera, quem sabe mesmo como o acontecimento onírico, o espaço e tempo tão próprio do sonho, onde o tempo já não conhecemos mais, e o espaço vai se alterando constantemente – uma hora é de manhã e um segundo depois já é de noite. O Matisse conseguiu fazer exatamente isso com a sombra que corta o rosto do jovem menino aluno de piano, com a falta de planos em sua pintura, a falta de perspectiva, ou seja, os espaços de entrecruzam, se entrelaçam, os andares da casa se mesclam em um só, o que é fora está dentro e o que é vazio está preenchendo.

Outro detalhe interessante é o tema da pintura: uma aula de piano. Considerando que o período moderno foi justamente um momento em que os artistas reivindicavam pela abolição da ideia de tema, ou de narrativa em suas pinturas, acho curioso pensar o que mesmo está em jogo nesse título, para além da ilustração de uma aula de piano. Do que se trata mesmo essa “aula de piano”? Penso muito sobre o tempo da música, como uma suspensão de um tempo cronológico, e uma abertura para um tempo outro, tempo kairos, tempo oportuno, fatídico, um momento em que o dia a dia se suspende, uma ordem de consciência se atravessa por alguma outra coisa, essa coisa que inclusive sinto ser o que estava em jogo no início do século XX , o momento presente, as coisas como elas são mesmo, quem sabe possamos chamar isso de “o real”, e não mais uma ilustração ou uma alusão às coisas visíveis, não mais retratar ou falar sobre o mundo a partir de regras ou artifícios para poder fazer tal coisa, mas olhar para o que é vivo, o que existe, enquanto um fenômeno, enquanto uma coisa que também existe para si mesma para além do que vemos ou apreendemos dela. Sinto que essa pintura do Matisse captura exatamente isso: o instante muito fugidio do que é vivo — e chama isso de uma simples “aula de piano”, afinal de contas, como diz Fernando Pessoa em seu poema Tabacaria, “não há mais metafísica no mundo senão chocolates”. Assim como esse poema – que para mim é a manifestação, em forma de poema, de todo pensamento e angústia e dor do sentimento de estar vivo, que acontece em frações de segundos no personagem, enquanto fuma um cigarro em sua cadeira e se levanta para olhar para fora da janela -, a Aula de Piano de Matisse, é essa fração de segundo que dura uma eternidade dentro de nós em momentos qualqueres, onde de repente a vida parece sussurrar em nosso corpo e toda falta de sentido se revela enquanto o nosso bem mais precioso: o vivo.